30/11/17

Triscaidecaquê?


As sextas-feiras 13 não são dias raros. Houve 172 nos últimos cem anos e este ano já houve duas, em janeiro e outubro. Há anos em que ocorre três vezes, como aconteceu o ano passado, em fevereiro março e novembro. Curiosamente, aliás, o dia 13 do mês calha com mais frequência a uma sexta-feira que a qualquer outro dia da semana

Isto dos dias de azar é uma coisa muito antiga e parece que a sexta-feira é um dia aziago em várias tradições. Também é muito antigo acreditar que o número 13 dá azar. Sobre quando e por que razão se deu a fusão das duas superstições, há várias ideias. É capaz de ser também uma coisa relativamente antiga. Aliás, não surpreende que se tenham inventado estas coisas em épocas em que se sabia pouco do funcionamento do universo, só surpreende é que não tenham ainda desaparecido… Bom, eu não conheço ninguém que leve a sério a história da sexta-feira 13, mas parece que há mesmo quem acredite nisso. 

Enfim, não é bem de superstição que vos queria falar, mas sim de palavras. Há estranhas palavras para designar os medos que as superstições geram – como há estranhas palavras para designar os medos todos: chama-se triscaidecafobia o medo do número 13 e o meda da sexta-feira 13 chama-se parascevedecatriafobia. É claro, podemos sempre agarrar em parasceve, sexta-feira em grego, e fazer *parascevefobia para o medo da sexta-feira, mas não encontrei a palavra  em lado nenhum. Já a versão inglesa paraskaviphobia, sim, aparece numa busca em Google. E isto leva-me a duas propostas de reflexão. 

Podemos ponderar se são necessários palavrões destes e palavrões técnicos em geral; se não vale mais reservar os nomes greco-latinos para as conversas entre especialistas e preferir, foras delas,  «medo das alturas» a acrofobia, «médico de ouvidos, nariz e garganta» a otorrinolaringologista e assim sucessivamente... 

E podemos também refletir sobre o que significa uma palavra fazer parte de uma língua. Parascevefobia é português ou não? Podemos considerar que há vários tipos de palavras que fazem parte de uma língua: as que, mesmo sem existirem ainda, estão na sala de espera dessa língua, preparadas para serem inventadas de acordo com as regras que os falantes têm na mente; as que estão na mesma sala de espera para serem inventadas segundo regras de «boa formação» relacionadas com a tradição etimológica e não com a capacidade de os falantes as compreenderam (é deste grupo, obviamente, que faz parte a parascevefobia); as que, embora façam parte dos dicionários, só foram usadas uma vez ou duas, por algum poeta, filósofo ou cientista; e também as que, embora usadas todos os dias pelos falantes da língua, nunca ganharam direitos de cidadania, e que «os lexicógrafos remetem, se lhes [vêm] ao gadanho, para o cemitério da língua, por espúrias e indecentes», para usar uma descrição de Aquilino Ribeiro. E as outras… 

Para terminar, voltemos ao número 13, que não à sexta-feira. A tal triscaidecafobia dá azo a práticas esquisitas: há hotéis e hospitais sem quartos 13; teatros sem camarotes 13; gente que vai a correr convidar alguém para a sua mesa, se o número de convivas chega a 13. Agora, nunca vi nenhum livro que salte da página 12 para a página 14, mas, quem sabe?, é capaz de ter havido já algum autor mais supersticioso que o tenha exigido ao editor…. 

25/11/17

Design, restauração e geração espontânea: o esperanto e outras línguas… naturais

Em dinamarquês, quando alguém diz alguma coisa que que não se percebe, diz-se que é volapyk. Mas volapyk devia ser, precisamente, o contrário disso. O volapuque («língua mundial», em volapuque) devia ser, como o nome indica, uma língua para todos se perceberem, para acabar com a incomunicação que resulta da babélica multiplicação das línguas humanas.

Há muitas línguas auxiliares construídas, como o volapuque, e o esperanto é a mais famosa de todas elas. Foi criado por L. L. Zamenhof no final do século XIX, com o propósito explícito de «ser diretamente um meio de comunicação internacional». A sua estrutura racional, com poucas regras e sem exceções, deveria «tornar o estudo da língua tão simples que a sua aquisição seja uma mera brincadeira para o estudante».

O pai de um amigo meu dizia que o esperanto, como todas as línguas construídas, nunca poderia vingar, porque não se consegue insultar um chofer de táxi em esperanto. Para quê inventar-se uma língua, que, por ser inventada, tinha de ser de alguma forma defetiva, em vez de promover uma língua natural a língua de comunicação mundial? A verdade é que o esperanto foi sempre, neste aspeto, uma língua diferente de outras línguas artificiais. Desde o início, a ideia era «aprender e usar [o esperanto] como [língua] viva, e não apenas como último recurso».

Lembro-me de ficar muito surpreendido quando me veio parar às mãos uma obra do japonês Masao Miyamoto, que Manuel de Seabra traduzira para português (Da arte e da morte, Lisboa: Futura, 1973). Conhecia as traduções de Manuel de Seabra de poesia em inglês e catalão e pensei: «O quê, Manuel de Seabra também traduz do japonês?» Mas, no prefácio, Manuel de Seabra respondia precisamente à minha interrogação, que ele previa em muito leitores: que não, que japonês não sabia, mas aquela obra não tinha sido escrita em japonês, mas sim numa língua que ele dominava bem, o esperanto. E isto causou-me nova surpresa: mas havia então quem escrevesse literatura em esperanto? Obviamente, o esperanto tinha uma dimensão – ou dimensões – que eu desconhecia…

Uns anos mais tarde, conheci em Paris duas pessoas que falavam esperanto entre elas. X., parisiense, e B., madrilena, tinham-se conhecido através de uma revista de esperantistas e corresponderam-se em esperanto algum tempo antes de finalmente se conhecerem pessoalmente. Quando se conheceram, por muito que cada um deles falasse relativamente bem a língua materna do outro, continuaram, naturalmente, a falar esperanto. Perdi o contacto com eles e não sei se tiveram filhos ou não, mas, se os tiveram, os filhos deles são hoje falantes nativos de esperanto. Não seriam os únicos. Soube há pouco tempo que se calcula entre mil e dois mil o número de falantes nativos de esperanto e não é apenas um fenómeno recente. Até se chegou já, pelo menos num caso, à terceira geração de falantes nativos. O esperanto é já, então, além de língua construída, também uma língua natural.

Quando soube da existência de esperanto materno, procurei trabalhos que descrevessem o que acontece ao esperanto ao passar de língua artificial a natural, isto é, ao tornar-se língua materna de alguém, um processo designado como nativização. Basicamente, a minha pergunta era: o que muda quando o input artificial dos pais é filtrado – ou talvez ajustado, não sei qual é a palavra correta – pelos mecanismos naturais de aquisição e processamento da língua? Pensei, por exemplo, que, sendo uma língua sem formas irregulares, talvez começassem a surgir as irregularidades comuns a todas as línguas naturais; ou que surgissem regras novas, de tempo ou aspeto verbal, ou de marcação de caso, ou de qualquer outro tipo, não presentes no esperanto não materno.

Esta passagem de língua artificial a língua natural é, em princípio, a mesma que acontece quando uma língua de comunicação, um pidgin, se torna língua materna de alguém e nasce assim, numa geração, uma nova língua natural, um crioulo. Mas, como assinala Benjamin K. Bergen[a], há diferenças significativas nas condições de nativização (todas as traduções do artigo são minhas, desenvolvendo siglas para facilitar a leitura):
[Versteegh] sugere[b] que, em determinadas situações, a aquisição do esperanto como segunda língua é homóloga à pidginização, na medida em que é usado um código comunicativo sem total regularidade, e esse código torna-se o idioma nativo da próxima geração. Por exemplo, se duas pessoas cuja única língua em comum é o esperanto têm uma filha antes de serem totalmente fluentes no idioma, esta filha funcionaria como uma crioulizadora, e pode prever-se o surgimento de regularidade no idioma da criança, onde a regularidade é limitada no contributo dos pais. Versteegh defende, porém, que não é provável que o esperanto seja objeto de mudanças estruturais fundamentais, porque, na realidade, os pais dos falantes de Esperanto Nativo geralmente aprendem o idioma fazendo cursos e usando gramáticas, dicionários e outros instrumentos de aprendizagem de línguas que não estão presentes em situações de pidginização. Isto, pensa ele, confere-lhes um grau de experiência linguística a que os falantes de pidgins não têm acesso.
Pode acrescentar-se que, quando surgem os crioulos, os primeiros falantes não vivem em comunidades de uma determinada língua e as línguas maternas dos seus pais eram muitas vezes muito diferentes, pelo que, além do pidgin, o único input linguístico regular a que esses primeiros falantes nativos tinham acesso era a língua da sua mãe, se se mantinham junto dela. Ora, como diz Bergen, «a maior parte dos falantes nativos de esperanto têm pais com a mesma língua, o que faz, portanto, com que o esperanto não seja usado como código de emergência» e «embora existam muitas organizações de famílias que falam esperanto, a grande maioria dos falantes nativos do esperanto não participa nesses grupos, e mesmo que o façam, geralmente não passam mais de uma semana por ano com esperantófonos fora da família.»

Mas, nota Jouko Lindstedt[c], «a crioulização não é o único paralelo para a nativização do esperanto. Como o assinala Versteegh, esta nativização pode ser comparável com a revitalização do hebraico quase na mesma altura em que surgiu o esperanto». E explica:
Ambos os casos têm a ver com uma decisão educativa tomada por pais com uma consciência linguística extremamente elevada. Quando o primeiro falante nativo do hebraico moderno nasceu em 1882, a sua situação não era de modo nenhum diferente da situação das crianças que adquirem o esperanto, de que os pais não são falantes nativos: o pequeno Ben-Zion Ben Yehuda não podia aproveitar o facto de o hebraico ter tido falantes nativos um milénio e meio antes. A descrição de Fellman[d] da primeira família de língua hebraica da era moderna mostra que os pais estavam em considerável desvantagem relativamente aos modernos pais falantes de esperanto, no que diz respeito à existência de nomes para objetos quotidianos ou à possibilidade de adquirir livros infantis.
No artigo de Bergen já citado, apontam-se ainda mais duas diferenças importantes nos dois processos:
(1) O input linguístico para os estudantes de hebraico como língua segunda [dos pais dos primeiros falantes nativos] era variado e idiossincrático em comparação com os de esperanto como língua segunda: e (2) o hebraico como língua segunda começou como um sistema fonológica e morfologicamente complexo e opaco, enquanto o esperanto como língua segunda é extremamente regular e transparente.
Apesar disso, notaram-se muito poucas alterações no hebraico nativizado relativamente ao hebraico língua segunda que lhe tinha servido de input; e, no trabalho feito até agora, exatamente o mesmo se pode afirmar da nativização do esperanto: as transformações que se observam no esperanto nativo relativamente ao esperanto como segunda língua – a existirem* – são mínimas e como é previsível, parecem depender, se não totalmente, pelo menos em grande medida, da influência da outra língua materna, que é também a língua da comunidade dos falantes nativos de esperanto (o adstrato, como se chama). Os possíveis filhos de X. e B., de que falava atrás, se criados em França com pai francês e mãe espanhola, fixariam, provavelmente, a ordem da língua em sujeito-verbo-objeto, o que tornaria redundante a marca de acusativo nos nomes. Pelo menos, isto foi efetivamente observado por Bergen* em falantes nativos de esperanto de língua materna também francesa. Mas os falantes bilingues de esperanto e eslovaco, por exemplo, mantiveram sempre a marcação do acusativo.

O que se conclui de tudo isto? Não muito, provavelmente. Quando comecei a escrever o que viria a dar este texto, há mais de um ano, interrogava-me sobre o seguinte: «Até que ponto é plástica a nossa capacidade da linguagem? A língua humana pode ter todas as características que a nossa mente consiga imaginar – e pode, assim, tornar-se língua materna de alguém uma língua com propriedades inventadas que nunca existiram em nenhuma língua natural? Ou devemos antes pensar que só as propriedades constatáveis nas línguas naturais, atualmente existentes ou já extintas, se podem fixar num cérebro humano? Dito de outra maneira, conseguimos imaginar línguas que não podem ser adquiridas por humanos, conseguimos descrever em pormenor uma língua inventada que, por mais que se tente, não possa tornar-se língua materna de ninguém?»

Estou convencido de que a experiência se pode fazer, embora não tenha a certeza de que valha a pena – e coitada da criança que tivesse de tentar adquirir uma língua inadquirível, se fosse esse o caso. Agora, com a pesquisa que fiz para este texto, aprendi não só que a nativização do esperanto está feita há muito, mas também que essa nativização não serve para responder à minha pergunta, porque o esperanto, mesmo antes de ser língua materna de alguém, já era de facto uma língua natural. Dou de novo a palavra a Jouko Lindstedt (ele próprio falante de esperanto como língua segunda e pai de falantes nativos), que o explica muito bem:
A gramática do esperanto nunca foi completamente descrita e codificada, nem mesmo quando Zamenhof era ainda a única pessoa a escrever na língua. Para dar um exemplo óbvio: as dezasseis regras da gramática do esperanto apresentadas pela primeira vez por Zamenhof em 1887 e por ele declaradas inalteráveis no trabalho normativo básico da língua, em 1905, não dizem nada sobre a ordem das palavras em frases simples ou complexas. No entanto, sempre ficou claro que o esperanto é uma língua Sujeito-Verbo-Objeto, com uma ordem relativa livre dos principais constituintes; que tem sintagmas nominais, sintagmas verbais e sintagmas preposicionais; que a maioria dos especificadores fica à esquerda dos seus núcleos e a maioria dos complementos à direita; e assim por diante. Isto é assim porque, desde o início, o uso do esperanto foi aprendido através da leitura de textos reais e audição de enunciados reais, primeiro os de Zamenhof, mas logo depois por outros escritores e palestrantes. Assim, é pelo uso real que o Esperanto foi ajustado à gramática universal: mesmo que os falantes do idioma tenham sido na sua maioria não-nativos, não introduziram nele nada que um idioma natural não pudesse incluir.


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[a] Bergen, Benjamin K., «Nativization processes in L1 Esperanto», in J. Child Lang. 28 (2001), pp. 575–595. Cambridge University Press, 2001
[b] Versteegh, Kees, «Esperanto as a first language: language acquisition with a restricted input». Linguistics 31, 1993, pp. 539–55.
[c]Lindstedt, Jouko, «Native Esperanto as a Test Case for Natural Language», in A Man of Measure Festschrift in Honour of Fred Karlsson, a special supplement to SKY Journal of Linguistics, vol. 19, 2006 (pp. 47–55)
[d]Fellman, Jack, The Revival of a Classical Tongue: Eliezer Ben Yehuda and the Modern Hebrew Language. Haia & Paris: Mouton, 1973

* Por enquanto, o número de observações e de falantes observados em cada uma delas é demasiado pequeno para se chegar a conclusões muito definitivas.