25/11/08

Ficção científica

[Ficção científica não é o título deste texto – é o seu género. Trata-se da apresentação de uma hipótese que, por ser baseada em pouco mais do que a minha tendência para o devaneio, deve ser encarada assim – como ficção científica. Um delírio, enfim.]

Um senhor chamado V. S. Ramachandran, um dos investigadores desse fascinante apetrecho cerebral que são os neurónios-espelho, sugere num texto do ano passado, “The neurology of self-awareness”, que a consciência de si próprio pode muito bem ter origem na consciência dos outros. Quer dizer, do ponto de vista evolutivo, tenho mais vantagem em desenvolver a capacidade de formular hipóteses e juízos sobre o que os outros pensam e sentem do que formular essas hipóteses e juízos sobre o que eu próprio penso e sinto. Com as palavras de Ramachandran:
Sugiro que a consciência de si próprio é simplesmente usar os neurónios-espelho para “olhar para mim mesmo como se outra pessoa estivesse a olhar para mim” (…). O mecanismo dos neurónios-espelho (...), que originalmente evoluiu para nos ajudar a adoptar a perspectiva de outra pessoa, foi virado para dentro, para olharmos para nós próprios. Isto é essencialmente a base de coisas como “introspecção”. Pode não ser coincidência que usemos expressões como “self-conscious” [literalmente “consciente de si próprio”, mas significando “tímido” ou “pouco natural”] quando o que queremos de facto dizer é que alguém tem consciência de que os outros têm consciência dele. Ou que digamos “estou a reflectir” quando queremos dizer que estamos conscientes de estarmos a pensar. Por outras palavras, a capacidade de se virar para dentro para introspecção ou reflexão pode bem ser um tipo de extensão metafórica da capacidade dos neurónios-espelhos de ler outras mentes. Parte-se muitas vezes do princípio tácito de que a capacidade exclusivamente humana de elaborar uma “teoria de outras mentes” (ver o mundo da perspectiva de outrem, “ler a mente”, tentar descobrir quais são as intenções de alguém, etc.) deve vir depois de um preexistente sentido de si próprio. Estou aqui a defender que é exactamente o contrário que é verdade: a “teoria de outras mentes” evoluiu primeiro como resposta a necessidades de ordem social e só mais tarde, bónus inesperado, veio a capacidade de introspecção dos próprios pensamentos e intenções.
V. S. Ramachandran diz depois que não se considera muito original ao defender estas ideias, porque elas fazem parte do espírito dos tempos que correm. Ora outra ideia que faz parte do espírito dos tempos é que existe uma dualidade natural na nossa concepção de nós mesmos que leva, em última análise, à ideia de uma essência de nós com as mesmas características que o conceito metafísico de alma. Já aqui referi uma vez, a (des)propósito de uma coisa completamente diferente, as ideias de Paul Bloom sobre esse tema. No artigo “The duel between body and soul”, (New York Times, Setembro de 2004), diz ele, por exemplo:
Perguntei uma vez ao meu filho Max, de seis anos, o que pensava do cérebro, e ele disse que é muito importante e que participa em muito pensamento – mas não é de lá que vêm o sonho ou sentir-se triste, ou gostar do seu irmão. Max disse que isso é ele que faz, embora admita que o cérebro o possa ajudar. Estudos de psicologia do desenvolvimento sugerem que crianças jovens não encaram o seu próprio cérebro como fonte de experiência consciente e de vontade. Vêem-no antes como uma ferramenta que se usa para determinadas operações mentais. É uma prótese cognitiva, acrescentada à alma para aumentar a sua capacidade de cálculo.

Esta maneira de ver as coisas pode não ser muito diferente da de muitos adultos. As pessoas ficam muitas vezes surpreendidas ao descobrirem que certas partes do cérebro se revelam activas – acendem – num scanner quando se pensa em religião, sexo ou raça. Esta surpresa mostra o pressuposto tácito de que o cérebro participa nalguns aspectos da vida mental, mas não noutros. Mesmo os especialistas, ao descreverem esses resultados, caem na linguagem dualista: “Penso sobre sexo e isso activa tal e tal parte do meu cérebro” – como se houvesse dois acontecimentos distintos, primeiro o pensamento e depois a actividade cerebral.
Discordo de Bloom nalgumas das suas posições sobre a predisposição natural dos seres humanos para a religião, mas tenho tendência a concordar com ele na questão do dualismo, porque é precisamente isso que observo constantemente na maneira como as pessoas – incluindo eu próprio, claro está – vão “naturalmente” parar a uma concepção de si próprias segundo a qual há um verdadeiro eu essencial e outros eus que o são menos, ao sabor das circunstâncias. “Uma pessoa passa-se!”,“Eu não me reconheço no que fiz!”, “Nós conseguimos convencer-nos a nós próprios de muita coisa, se quisermos!”, “O que importa é livramo-nos do que nos impingem e sermos nós próprios!”, “Temos de aprender a aceitar-nos como realmente somos”, etc., etc.... E isto para não entrar já em questões mais complexas como a da entidade que escolhe, quando falamos de livre arbítrio...

E se a consciência de nós nunca se tiver completado? Se a condição para conseguir virar para dentro a capacidade de formular teorias sobre as mentes alheias for a impossibilidade de identificar a entidade que formula a teoria sobre a mente que observa com a entidade possuidora dessa mesma mente? A cisão do eu, a ficção dualista de base, estaria assim explicada. A consciência de nós próprios talvez não se possa com propriedade chamar assim – talvez continue a ser sempre consciência de outro alguém, mesmo que lhe chamemos eu.

Dos dois limites que temos, mais um terceiro

Diz-se muitas vezes que alguém “se superou a si próprio”, que “foi além das suas próprias capacidades”, mas, logicamente, é apenas de um pretenso limite que se está a falar. Chamemos-lhe daqui para a frente “o primeiro limite”, para simplificar o texto. O primeiro limite é, então, um limite aparente, mas de uma aparência muito convincente, tão convincente que nos parece uma barreira real. Provavelmente, porque é o limite do razoável, digamos assim; porque, de cada vez que o passamos, estamos a fazer-nos mal a nós próprios. Não podemos, pois, permitir-nos atravessá-lo de ânimo leve; tem de nos surgir como bastante insuperável. O que é interessante é que a natureza, mãe carinhosa que é, nos apetrechou com mecanismos especiais para nos ajudar a passar para além desse primeiro limite. Por exemplo:

A fome avisa-nos de que precisamos de comida. Quanto mais tempo passamos sem comer, mais fome temos, naturalmente. Até que ultrapassamos a tal barreira e, ao fim de três, quatro, cinco dias sem comer (depende das pessoas), deixamos de ter fome. Carinhosa, a mãe natureza, dizia eu. É que, se não for por curiosidade intelectual ou por obediência a qualquer estranho preceito místico que deixamos de comer, mas apenas por falta de comida, não nos ajuda nada o tormento da fome. Então, ultrapassamos esse primeiro limite e deixamos de ter fome, e é capaz de nos ser assim mais fácil arranjar com que nos alimentarmos.

O mesmo com o esforço físico. Andar ou correr muito, por exemplo. Estamos tão cansados que já não aguentamos mais. Temos de parar, descansar, as pernas já não respondem, o cérebro começa a aquecer, a aquecer. Mas depois, se nos conseguirmos controlar o suficiente para desobedecer aos avisos do corpo sobre as fronteiras do razoável, podemos continuar a andar ou a correr muito mais tempo. Sem grandes problemas. Também isto é sem interesse quando uma pessoa se cansa a andar ou a correr por gosto. Mas imaginem que é de uma situação de guerra que se trata ou de fugir de qualquer outro perigo que nos ameace a vida. Ainda bem que a mãe natureza é carinhosa e nos faz esquecer que estamos a ir longe demais no nosso esforço, porque mais vale dar um bocadinho cabo da vida do que perdê-la.

E com o sono passa-se algo semelhante, como toda a gente sabe. Muito tempo sem dormir e a pesada sonolência inicial é substituída por um estado nervoso de permanente alerta, em que não conseguimos já dormir, por mais que tentemos e apesar da exaustão. Esse estado de alerta, para lá do limite do sono, pode também ser a nossa salvação em muitas situações de perigo.

A ideia que eu tenho é que não é só para além da fome, do esgotamento físico ou do sono que se pode passar, mas também para além de todas as sensações negativas. De toda a dor, digamos assim. Quando chegamos ao insuportável, dessensibilizamo-nos, para poder seguir em frente. Pensem em quem viu morrer à sua volta todos os seus e multidões mais de pessoas, em quem viu literalmente desmoronar-se o seu mundo; pensem em quem foi vítima de crueldades maiores do que estamos habituados a conceber. Como ficar preso na dor pode ser fatal, desenvolvemos a capacidade natural de ultrapassar a primeira barreira e continuar.

Depois, há uma altura em que a falta de alimentos no corpo nos impede de não sentir fome. Atingimos o segundo limite, e comemos ou caímos. A certa altura de corrermos para além do cansaço, caímos mesmo para o chão. Atingimos também o segundo limite. Ao fim de muito tempo de alerta permanente, caímos de sono. É inútil sequer tentarmos manter-nos despertos, porque atingimos o segundo limite. E o segundo limite dos outros males menos físicos, digamos assim, que forma tem ele? Provavelmente, atingimos esse segundo limite quando a dor nos faz perder a razão.

Para além deste segundo limite, não há mais nada. Que se o ultrapasse e – mais ou menos literalmente, conforme a situação – é a morte. O terceiro limite, portanto. Que, vendo bem, é que é o limite que conta. Porque às três tem vez, não é verdade?

17/11/08

Lendas portuguesas: rosas húngaras e amendoeiras andaluzas

A lenda das rosas

Havia em Paris (talvez ainda haja...) um bar chamado Lèche-Vin, que era todo decorado com imagens de santinhos e santinhas, excepto a casa de banho, cujas paredes eram forradas a fotografias pornográficas. Uma noite, enquanto saboreava uma bière de garde, chamou‑me a atenção uma das santinhas na parede mesmo ao meu lado. Ou melhor, o que me chamou a atenção não foi tanto a santa mas o texto que tinha por baixo: “Há muito tempo, transformaram-se bocados de pão em rosas nas pregas do vestido de Santa Roseline, padroeira dos Cartuxos”.

Vim a saber mais tarde, à leitura de um romance de Somerset Maugham sobre uma parte da vida de Maquiavel (Then and now) que (traduzo eu) “[Isabel da Hungria,] proibida pelo seu cruel marido de acudir aos necessitados, encontrou-o na rua um dia em que levava com ela pão para os pobres. Suspeitando que ela estava a desobedecer às suas ordens, ele perguntou‑lhe o que levava no cesto e ela, assustada, disse-lhe que eram rosas. Ele arrancou-lhe o cesto da mão e quando o abriu constatou que ela tinha dito a verdade. Os pães tinham-se milagrosamente transformado em rosas de cheiro doce.” Não sei se isto se terá passado com o marido, como conta a lenda, ou antes com o cunhado, porque foi o cunhado que, depois da morte do marido, a acusou publicamente de andar a gastar o dinheiro das propriedade da família deles, na Turíngia.

Seja como for, acho que perceberam onde é que eu quero chegar: estas histórias são iguais entre si e iguais à lenda que todos conhecem e que se conta de Isabel, esposa do nosso rei Dinis. Seguindo um critério cronológico, a milagreira original deve ser Isabel da Hungria e não a de Portugal, já que a santa húngara, tia-avó da portuguesa, viveu umas quantas décadas antes dela. E mesmo Santa Rosaline de Villeneuve (1263-1329), a outra candidata ao milagre das rosas, é ligeiramente mais velha do que Isabel de Aragão (1271-1336); e, sobretudo tendo em conta que o milagre das rosas que se lhe atribui se deu na sua juventude, também o pão se lhe transformou em rosas no regaço antes de o mesmo extraordinário acontecimento se ter dado com a Isabel de D. Dinis...

Mas enfim, o que mais me interessa nesta história é analisar com que tipos de atitudes compactua Deus, se assumimos que o milagre é produto da intervenção divina: O marido (ou o pai, no caso de Roseline de Villeneuve) não quer que a santa pratique a caridade; e quando o homem aparece, a santa, em vez de assumir o bem que faz, tenta disfarçá-lo, submissa ao poder masculino. O milagre devia ser, acho que estamos nisso todos de acordo, cair do céu um martelo em cima da cabeça do homem, e que lhe abrisse um fenda no crânio por onde o Espírito Santo pudesse entrar, começando então o ex‑sovina a contribuir voluntariamente do seu bolso com qualquer coisinha para os mais desfavorecidos – e já não digo instituir um sistema social justo nos seus domínios, que, mesmo para milagre, é pedir demais a Deus… Mas, não! O que Deus faz, milagre dos milagres, é ajudá‑la a mentir para se safar de um raspanete do pouco caridoso marido (ou pai).

A lenda das amendoeiras

Dispenso‑me de comentar a moralidade deste nosso criador e passo antes a traduzir do inglês um texto que encontrei num “livro de factos” das Selecções do Reader’s Digest (AAVV, Reader’s Digest Book of Facts. Cape Town: Reader’s Digest Association of South Africa – Printbak Books, 1989, p.63.)
Um rei árabe mandou uma vez plantar com amendoeiras toda a encosta de uma colina – para agradar à sua esposa favorita. Este rei, Almotamid, que reinou na região à volta de Sevilha em meados do século XI, quando Espanha era, em grande parte, uma colónia moura, mandou fazer esta plantação perto de Córdoba, porque a sua mulher – uma escrava cristã chamada Itimad – nunca tinha visto neve. Na Primavera, as pétalas caídas das flores das amendoeiras cobriam de branco as encostas, o mais parecido como neve que se conseguia no clima temperado do Sul de Espanha.
Esta versão da história diverge, pois, da que nós que conhecemos como “portuguesa” e como “A lenda das amendoeiras” por não se passar no Algarve (embora, de facto, o reino de Al-Mutamid abrangesse também o Algarve) e no pormenor importante de que Al-Mutamid quer mostrar a I’timad que aspecto tem a neve, ao passo que na versão portuguesa (pelo menos, como eu a conheço) o rei mouro não identificado quer, com a “neve” artificial, matar as saudades que a sua nórdica esposa sente das paisagens de Inverno da sua terra natal. Na minha opinião, esta versão da história é muito mais bonita. Agora, a história é provavelmente tirada do Libro de los ejemplos del conde Lucanor y de Patronio, de Don Juan Manuel. Se assim for, a versão original, que vem em pouco mais de um parágrafo do “Exemplo XXX” desta obra, não é bem nem como a do livro das selecções do Reader’s Digest nem como a que eu aprendi na escola (traduzo eu), mas mais próxima desta do que daquela:
(…) um dia, estando em Córdova no mês de Fevereiro, caiu uma neve; e quando Ramaiquía a viu, começou a chorar. E perguntou-lhe o rei por que chorava. E ela disse-lhe que porque nunca a deixava estar em terra onde visse neve. E o rei, para lhe agradar, mandou pôr amendoais por toda a serra de Córdoba; para que, como Córdoba é terra quente e não neva aí todos os anos, em Fevereiro aparecessem floridos os amendoais, que parecem neve, para lhe fazer perder os desejos da neve.
Agora, pergunto eu, por que é que Al-Mutamid não levou I’timad à Sierra Nevada, que fica ali perto? Apaixonado, talvez, mas de paixão preguiçosa.

Para terminar, como as palavras são como as ginjinhas, e a propósito de origens desconhecidas de histórias conhecidas, uma curiosidade: Sabiam que foi ao Libro de los ejemplos del conde Lucanor y de Patronio, de que eu falava aí atrás, que H. C. Andersen foi buscar a história, que toda a gente pensa que foi ele que inventou, de um rei que andava nu convencido de que andava bem vestido?

06/11/08

Histórias de arenques e bacalhaus

Quando se faz história de temas em vez de se fazer história de nações e dos seus líderes, os objectos de estudo que eu vejo são sempre abstractos. Há história do medo, da democracia, da família, da vida privada, das doenças, da contracepção, do diabo, etc., etc., etc., mas nenhum desses temas de mentalidades e instituições tem cheiro que não seja metafórico e vago. Nada que se possa comparar com o apetitoso cheiro – nauseabundo, dirão alguns, eu sei… – do arenque e do bacalhau, de que li há pouco tempo duas histórias (uma de cada um, claro está…): Cod: A Biography of the Fish That Changed the World, de Mark Kurlansky* (London: Penguin, 1998) e Herring - A History Of The Silver Darlings, de Mike Smylie (London: The History Press LTD, 2004). São dois livros, perdão..., dois peixes fundamentais para a história da Europa e de mais alguns lugares do mundo.

[Esclareço também que, ao contrário do que eu dizia noutro texto desta Travessa (e espero que isso não tenha sido claro para ninguém, porque a minha intenção, nesse texto, era precisamente que não se distinguisse o que era irónico do que não o era…), acho mesmo que toda a gente devia comer peixe e sopa, e tudo com azeite cru, em vez de porcarias que só fazem é mal!]

As duas histórias de peixes de que aqui falo agora têm várias coisas em comum: são ambas de escrita escorreita e leitura fácil; são as duas pouco académicas e, a espaços, de rigor duvidoso (mais a primeira do que a segunda), mas têm ambas também muita informação interessante e suficientemente documentada; têm as duas muitas receitas, de gastronomias várias e algumas delas muito antigas; e são ambas ilustradas com muitas e bonitas fotografias, desenhos e gravuras (mais a segunda do que a primeira). Eis uma selecção um bocado ao calhas de coisas que se podem aprender nestes livros: aprende-se, por exemplo, que, ao contrário do que possam imaginar alguns ecologistas ingénuos, há muito tempo que se come comida transportada de bem longe; aprende-se que muitas receitas de cozinha que muita gente considera exclusivas do seu país (pastéis de bacalhau, por exemplo…) não são de uma exclusividade assim tão exclusiva como isso tudo…; aprende-se como James I de Inglaterra teve a ideia de delimitar águas territoriais e como a ideia se foi desenvolvendo; que o arenque constituía uma parte importante da alimentação dos soldados do império britânico; que era, em muitos sítios, em arenques que se pagavam tributos feudais e dízimas; que o arenque é um dos produtos cujo comércio está na origem da criação da Liga Hanseática; aprende-se que as cabeças do bacalhau eram, antigamente, a parte mais valorizada desse peixe (fresco, entenda-se); aprende-se como os pescadores foram tranquila e obstinadamente esvaziando os mares de peixe (mas isso já toda a gente sabe, não é?); e como os gostos foram mudando à medida que a Europa se ia desenvolvendo, até o peixe deixar de fazer parte da dieta quotidiana da esmagadora maioria dos seus habitantes (Portugal e Espanha ainda são, ao que parece, uma ainda-bem-que-excepção). E aprende-se também que – ao contrário do que pensam muitos portugueses e embora se tivessem fartado de o pescar, ninguém lhes tira isso – não foram os portugueses os mais importantes pescadores de bacalhau** (e, claro, de arenque também não o podiam ser, que não é peixe das nossas águas nem das nossas tradições), mas tiveram, em certas épocas um papel muito importante na conservação de ambos os peixes, que foi o de fornecerem sal – e o sal favorito dos produtores: no início do século XIV, o sal de Aveiro era o sal preferido para salgar bacalhau de boa qualidade; na mesma altura, era proibido aos neerlandeses usar o chamado “sal de Lisboa” (que era de facto de Setúbal) para a salmoura do arenque de barrica, mas, nos séculos seguintes, era esse mesmo sal considerado o melhor para esse fim.

Agora, certo já de sermos o sol, o sul e muito o sal, o que tenho de fazer a seguir é arranjar um livro sobre a “rechinante sardinha” (deve haver…), que é, aliás, também da família dos arenques. De facto, os dois peixes são tão parecidos no sabor e na textura que eu não percebo por que é que não se comem arenques assados na brasa nos países do Norte e por que é que não se faz conserva de sardinha em molhos à base de vinagre, sal e açúcar nos países do Sul. Tenho de ser eu, está visto, a acabar com esses prconceitos. E depois digo-vos o resultado, sim?
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* Está traduzido em português americano e em português europeu. A edição portuguesa é O Bacalhau: biografia do peixe que mudou o mundo. Lisboa: Terramar, 2000.

** De facto, os portugueses praticamente não pescaram bacalhau entre o século XVI e o século XIX, e, mesmo no período áureo da pesca do bacalhau, dos anos 40 aos anos 70 do século XX, quando Portugal conseguiu chegar a ser o primeiro produtor mundial de bacalhau seco e salgado, não deixou nunca de importar bacalhau. Para um resumo da história da pesca do bacalhau, ver, por exemplo, o documentário da RTP Faina maior, a pesca do bacalhau, do historiador Fernando Rosas, com a participação do historiador Álvaro Garrido, especialista do tema.

03/11/08

Universais de religiosidade – todos os deuses são humanos!

Paralelamente a muitas outras discussões sobre religião, há uma, muito interessante e cada vez mais aguerrida, entre quem acha que a religião é algo natural, inerente à condição humana – ou até que constitui uma construção adaptativa, com vantagens para a espécie –, e quem acha que a religião não é de modo algum um traço essencial da nossa humanidade e que passamos todos bem sem ela. A discussão tem tido muitas vertentes e há algumas sobre as quais não sei pronunciar-me. Por exemplo, na sequência de um interessantíssimo texto de Paul Bloom, houve no Reality Club um debate também muito interessante sobre o papel do nosso dualismo inato na religiosidade. Vários estudiosos concordam que, já de bebés, consideramos que há uma parte essencial de nós – uma alma, digamos assim, para simplificar –, que é distinta da nossa mente; mas nem todos concordam que esse dualismo inato implique que seja inata a religiosidade – ou a predisposição para ela.

Há outros estudos, porém, da predisposição humana para a religiosidade, que são facilmente comentáveis mesmo por quem não seja um especialista do assunto – como eu não sou. Já aqui uma vez comentei o postulado de que a vantagem mnemónica das histórias de seres sobrenaturais é uma explicação eficaz do sucesso das religiões. Agora, tenho de criticar a ideia do senhor Pascal Boyer no seu artigo “Religion: Bound to believe”, publicado na revista Nature (Nº 455, 1038-1039, de 23 October 2008, agora, só a pagar…) de que, no inconsciente dos crentes, todos os deuses de todas as religiões têm determinadas características, uma das quais é… serem humanos (traduzo eu):
O pensamento e o comportamento religiosos podem ser considerados parte das capacidades humanas naturais, como a música, os sistemas políticos, as relações familiares ou as alianças étnicas. Há descobertas da psicologia cognitiva, das neurociências, da antropologia cultural e da arqueologia que prometem mudar a nossa maneira de ver a religião. […] Uma descoberta importante é que as pessoas só têm consciência de algumas das suas ideias religiosas. […] A psicologia cognitiva mostra que [as suas crenças religiosas conscientes] são sempre acompanhadas por uma série de pressupostos tácitos que, em geral, não estão disponíveis para inspecção consciente. // Por exemplo, há experiências que mostram que a maior parte das pessoas tem expectativas altamente antropomórficas relativamente aos deuses, sejam quais forem as suas crenças explícitas. Quando lhes contam uma história em que um deus resolve vários problemas ao mesmo tempo, acham esse conceito bastante plausível, uma vez que os deuses são, em geral, descritos como tendo poderes cognitivos ilimitados. Recordando a história momentos mais tarde, a maior parte das pessoas diz que o deus resolveu uma situação antes de passar à situação seguinte. As pessoas também esperam implicitamente que as mentes dos seus deuses funcionem como mentes humanas, mostrando os mesmos processos de percepção, memória, raciocínio e motivação. Essas expectativas não são conscientes, e são muitas vezes contraditórias relativamente às suas crenças explícitas.

Ora, mas então, o que isso quer dizer é que as pessoas são naturalmente realistas; o que isso quer dizer é que, como tem sido apontado muitas vezes, e até pelo próprio Pascal Boyer, se não estou em erro, os seres humanos têm, já à nascença, uma ideia bastante clara do que é possível e impossível neste mundo; o que isso quer dizer é que, mesmo que apenas intuitivamente, as pessoas sabem que não existem seres com as propriedades e as capacidades que as religiões atribuem aos seus deuses! É só isso. Por outras palavras, isso não é evidência de que a religião seja natural nos seres humanos, mas, pelo contrário, de que ela é, para os seres humanos, contra natura. Ou seja, essas descobertas que Pascal Boyer chama em defesa do seu postulado de que “o pensamento e o comportamento religiosos podem ser considerados parte das capacidades humanas naturais” provam, afinal, que o que é natural no pensamento humano é não aceitar no sobrenatural qualidades que não sejam perfeitamente naturais…

E o medo que temos de não passar de bichos… Pela minh'alma!

Lembrei-me no outro dia de uma conversa com uma colega da faculdade, depois de uma aula que ela teve sobre uma famosa experiência sobre dilatação de pupilas que Eckhard Hess e James Polt fizeram em 1960 (traduzo o resumo que dela faz Jason Waite*):
(...) Hess e Polt apresentaram a um grupo de 20 homens duas fotos idênticas de uma mulher, que diferiam num único aspecto. Numa, as pupilas da mulher tinham sido muito ampliadas, ao passo que, na outra, as pupilas eram extremamente pequenas. Em média, [a dilatação das pupilas] nos homens, em resposta à fotografia com as pupilas aumentadas, era duas vezes maior do que em resposta à fotografia com as pupilas pequenas. Após a experiência, pediu-se aos homens que comentassem as fotografias e a maior parte disse que eram idênticas. Entre os poucos que não disseram que as fotos eram iguais, alguns afirmaram que numa a mulher [com as pupilas dilatadas, entenda-se] era “mais bonita” ou “mais feminina”. Nenhum dos participantes no teste tinha notado a diferença de tamanho das pupilas da mulher da fotografia. 
“Ficou tudo histérico na aula”, tinha-me contado a minha colega, “quando o professor aventou a possibilidade de a nossa concepção de beleza ser determinada por mecanismos fisiológicos primários. Houve mesmo quem reagisse mal. A própria ideia de que se façam estudos puramente etológicos de seres humanos é chocante para muitos dos meus colegas.”

Está bem que eram estudantes de Humanidades, mas mesmo assim… A reacção é típica: ninguém quer ser considerado um animal. E muito menos uma máquina… O facto é que querer desalmar a humanidade, retirar-lhe aquilo que a diviniza (a alma é, ao que dizem, o que têm em as pessoas em comum com deus…) continua a ser muito mal visto em pleno século XXI. Donde nos virá este medo essencial de sermos só um emaranhado complexo de músculos e nervos? Uma das vertentes mais fortes deste preconceito é a recusa das características congénitas de carácter. No outro dia, em casa de um amigo, discutia-se a preguiça de uma amiga comum. “Ela é exactamente como o pai dela”, explicou ele. E perguntou-lhe a filha de 13 anos: “Achas que a preguiça é hereditária?” “De que é culturalmente transmissível, não tenho dúvida nenhuma!” Ora ele não tem, à partida, mais razões para acreditar que – pelo menos naquele caso – a preguiça seja mais cultural do que geneticamente transmitida. Mas, como toda a gente, favorece a priori a hipótese de que seja o meio e não o património genético a determinar esse traço de personalidade. É estranho!

Ou antes, não é estranho, porque é o que toda a gente faz. Se se fala de uma pessoa com problemas sociais que vem de uma família disfuncional, o normal é ver na disfuncionalidade da família a razão de ordem ambiental para os problemas das pessoas, e nunca admitir como hipótese que ela tenha herdado fisicamente essa disfuncionalidade. Ora, à partida, enquanto não se souber bem o que faz de cada um nós o que ele é, as duas hipóteses têm, pelo menos, o mesmo valor: 50% de probabilidades cada uma. E 50% é precisamente uma percentagem muitas vezes prudentemente apontada para contabilizar a influência na personalidade de cada um dos factores, o ambiental e o genético…

É claro, estou a exagerar quando digo que não percebo por que é que existe essa sistemática desvalorização do genético em relação ao adquirido. De facto, tenho algumas propostas de explicação: uma é o terror do pseudo-cientismo racista à maneira nazi; outra é a apropriação pelo senso comum das teorias psicanalíticas e afins; outra é que nos sentimos menos bichos e menos máquinas se nos acreditarmos mais determinados pelo meio do que pelos genes... Agora, por conservadorismo não é. Podia pensar-se que isto de começar a considerar a herança genética uma componente fundamental da maneira de ser da cada um é moda nova, e que ir contra essa forma de ver as coisas é ater-se à tradição, mas, de facto, as coisas não são nada assim. Existe, desde há muito, em todas as sociedades, uma consciência clara do valor do herdado: não só se fabricam raças de cães com “personalidades” específicas, como se diz que a Maria sai mais ao pai e o Zé mais à mãe – por exemplo porque gosta de dormir até tarde ou porque tem medo do mar. No outro dia, dei por mim a pensar que podemos até fazer uma releitura “geneticista” do refrão «Filho és, pai serás, como fizeres, assim acharás»: Para o provérbio ter algum sentido, ou admitimos que é Deus que nos recompensa ou nos castiga pelo bem ou pelo mal que fizemos aos nossos pais (e esta é, desculpem-me os crentes, uma leitura completamente disparatada!) ou então os nossos filhos tratar-nos-ão como nós tratámos os nossos pais – porque herdaram de nós essa maneira de ser…

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* Atualização a 9 de novembro de 2021: A página de Jason Waite onde se encontrava este texto (http://ohiotrumpetguild.org/~psych/psycweb/history/hess.htm) desapareceu entretanto, subsistindo durante algum tempo uma cópia do texto noutra página (http://zlgc.usx.edu.cn/kc/xlxs/contents/1697/4549.html). Atualmente, porém, não consigo encontrar em linha o texto que traduzo. terão de confiar em mim...)