02/10/07

D’escrever

Edgar Allan Poe tem dois textos, “The Domain of Arnheim” e “Landor’s Cottage”, em que passa, respectivamente, cerca de 1500 e de 4500 palavras a descrever minuciosamente uma paisagem. Se, em “The Domain of Arnheim”, a primeira parte do conto (?) serve para apresentar uma personagem e discutir teoria da arte, em “Landor’s Cottage”, a que ele chama “um complemento” (a pendant) ao “Domain...”, nem isso há: o texto é apenas uma longa e detalhada descrição de uma propriedade rural. A questão que se me colocou de imediato foi: «Mas o que queria Poe com um texto assim?» Provavelmente, apenas treinar descrições. E se calhar deixou-se levar depois pelo prazer que o exercício lhe dava…

Para descrever bem, é preciso treinar muito. Quem alguma vez tenha já tentado fazer descrições – nem que breves e de objectos ou espaços pouco complexos – sabe que descrever é extremamente difícil. Ouvi uma vez dizer que o pai de Marguerite Yourcenar a fazia praticar horas a fio descrições pormenorizadas de lugares ou coisas, alguns (aparentemente …) tão simples como uma moeda; e que foi assim, com esses cansativos exercícios, que ela foi adquirindo a sua fabulosa técnica de escrita. Nunca tive oportunidade de confirmar se havia algo de verdade nesta história que me contaram, mas é certo que só praticando muito se consegue ser um bom descritor.

A primeira – e talvez a maior – dificuldade que nos surge quando tentamos descrever é nomear as coisas. Uma porta, por exemplo. Na melhor das hipóteses, sabemos palavras como almofada, aduela, gonzo ou dobradiça, e puxador, por exemplo, e achamos que já sabemos, mesmo assim, mais do que muito boa gente. Mas damo-nos depressa conta de que, em certas descrições de uma porta, estas palavras não nos chegam. Para saber descrever bem, há que saber muitas palavras – há que aprender muitas palavras. Depois, coloca-se o problema das posições relativas no espaço. Se na vida normal resolvemos tudo com meia dúzia de preposições e locuções básicas, na escrita é tudo mais complicado. E depois, põe-se o problema de colorir, de dar vida ao descrito, não se fique a descrição de uma casa por ser a memória descritiva do seu arquitecto… E depois…

Quando leio grandes descrições, fico sempre impressionado. Lembro-me, por exemplo, do efeito que tiveram em mim as primeiras páginas de Nostromo, de Joseph Conrad, em que é descrita a cidade fictícia de Sulaco. Mas, será que mesmo a mais rigorosa descrição faz surgir na mente do leitor uma imagem relativamente fiel daquilo em cuja descrição o escritor tanto se empenhou? Parece-me óbvio que não – nem aproximadamente. Aliás, acho que normalmente as muitas palavras nem chegam a invocar nenhum imagem concreta no espírito de quem lê… Tomemos uma passagem ao acaso (e é mesmo ao acaso…) de “Landor’s Cottage” (traduzo eu):

A parede desguarnecida da empena oriental era cortada apenas por uma escadaria (com uma balaustrada) que a atravessava em diagonal – subindo de sul. Cobertas pela projecção do amplo beiral, estas escadas davam acesso a uma porta que levava ao sótão, ou antes, desvão – porque apenas o iluminava uma única janela dando para norte e parecia ter sido concebido como arrecadação. As varandas da casa principal e ala oriental não tinham pavimento, ao contrário do que é habitual; mas, diante das portas e de cada janela, havia, embutidas na deliciosa relva, grandes lajes irregulares de granito, que proporcionavam um piso confortável em qualquer estação. Excelentes carreiros do mesmo material – não exactamente ajustados, mas com a relva aveludada preenchendo frequentes intervalos entre as pedras, levavam, em várias direcções, da casa a uma fonte cristalina cerca de cinco passos, à estrada, ou a uma ou duas dependências que ficavam a norte, atrás do riacho, completamente escondidas por algumas alfarrobeiras e catalpas.

Boas descrições precisam de leitores eruditos, que saibam o que significam ao certo as palavras criteriosamente escolhidas pelo autor (muito boa gente não sabe o que é uma empena ou o que são catalpas, e não tem disso nenhuma obrigação…); boas descrições precisam de uma leitura atentíssima, esforçando-se por reter o que já foi dito e relacionando-o em permanência com o novo que vai sendo descrito; mas nem assim se lá chega… É certo que falta aqui o resto da descrição da casa. Mas, mesmo com a descrição completa duvido que o leitor consiga ter uma visão minimamente nítida do que é descrito. Eu, pelo menos, não consigo…

Costuma dizer-se que uma palavra suscita mil imagens. Talvez. Mas, para uma única imagem, não há palavras que cheguem…

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