17/04/24

Estupidez e discriminação, mais uma vez

 Ricky Gervais (traduzo eu):

«Quando se está morto, são se sabe que se está morto. É só para os outros que isso é doloroso e difícil. O mesmo acontece quando se é estúpido.»

Encontra-se a mesma ideia noutro meme que circula nas redes sociais: 

«As pessoas gordas sabem que são gordas. As pessoas magras sabem que são magras. Não seria maravilhoso se as pessoas estúpidas soubessem que são estúpidas?»

Seria quase tentado a dizer que estas afirmações são uma estupidez e que, por isso mesmo, tenho de lhes dar razão: quem as diz não faz ideia da estupidez que são. Mas não é assim. São apenas afirmações em que tenho boas razões para não acreditar e que quero aqui discutir. Aliás, já aqui falei desta questão uma vez, mas quero agora desenvolver um pouco a discussão.

Precisamos de assentar, antes de mais, no que queremos dizer com estúpido e estupidez. Estúpido pode significar coisas como «atónito»; «insensato», «imprudente»; «grosseiro», «indelicado»; «desinteressante», «entediante»; ou «absurdo», mas nas frases que servem de introdução a este texto, estúpido é usado no sentido de «falto de inteligência», que é, provavelmente, o significado mais imediato da palavra para a maior parte das pessoas.

É claro, pode considerar-se que estúpido é muitas vezes apenas um termo de forte desaprovação. Muitas vezes, chamamos estúpido a alguém apenas para discordar veementemente das suas ideias ou ações mais do que para o acusarmos propriamente de alguma deficiência cognitiva. Se escolhemos utilizar estúpido nesta situação, porém, é para afirmarmos que falta à pessoa que acusamos de estupidez a capacidade de compreender ou sentir algo que nós compreendemos e sentimos. Há sempre alguma acusação de falta de capacidade.

Se nos detivermos agora a analisar agora esta ideia de falta de inteligência, constatamos umas quantas coisas importantes:

A capacidade cognitiva de uma pessoa não é adquirida e está fora do seu controlo — a não ser que identifiquemos inteligência com conhecimento, o que não parece muito sensato. A dificuldade de aprendizagem é, claro está, um obstáculo à aquisição de conhecimentos, mas apenas um dos muitos obstáculos possíveis, e há pessoas muito inteligentes que nunca tiveram, por razões várias, acesso à aquisição de conhecimentos. Assim sendo, o nível de inteligência de uma pessoa, seja lá o que for que com isso queiramos dizer, é como a cor dos olhos ou da pele, a forma das pernas ou a tendência inata para a corrida ou para determinada doença.

A falta de capacidade cognitiva de uma pessoa, quando existe, não se aplica necessariamente a todas as suas funções cognitivas, mas apenas a algumas delas. Por exemplo, pode ser-se muito fraco em raciocínio abstrato e ter uma excelente memória ou uma grande capacidade de organizar volumes no espaço, etc. Muitas pessoas eram antigamente simplesmente consideradas «burras» em geral e incapazes de aprendizagem por terem dislexia ou discalculia — o que hoje está longe de ser considerado sinónimo de burrice.

A falta de capacidade cognitiva não é uma condição comum entre humanos — todos fazemos coisas desarrazoadas, estupidezes (!), mas a falta de inteligência como condição (ser estúpido, ter deficiências cognitivas) é rara.

E por fim, a falta de inteligência não tem implicações morais: são possíveis todas as combinações de qualquer grau de inteligência com qualquer grau de moralidade. Muitas pessoas más, seja lá o que for que cada qual defina como mau, são inteligentes, algumas até acima da média, e muitas pessoas com pouca inteligência são boas pessoas.

A estupidez está muitas vezes incluída na retórica discriminatória como sendo, precisamente, a característica que mais justifica a discriminação. Às vezes, é a (pretensa) categoria que justifica, só por si, a discriminação. É certo que, às vezes, se atribuem, a quem se discrimina, outras qualidades negativas, como a maldade, a preguiça, o espírito de trapaça, etc. Mas, de que costuma mais rir-se quem se ri de anedotas de alentejanos (ou belgas, ou aarhusianos, ou seja lá o que for, as histórias são as mesmas em todo o lado, muda só o objeto de chacota), do Samora Machel ou de loiras, entre muitas outras? Da sua pretensa estupidez…

Talvez a característica com que seja mais fácil comparar as deficiências cognitivas seja a fealdade. Ser feio tem, em parte, as características que enumerei atrás para ser pouco inteligente e também resulta em desvantagens ao longo da vida, às vezes grandes. No entanto, há muito quem não ache bem acusar outras pessoas de serem feias, mas não se coíba de chamar burros àqueles de quem discorda — ou até de considerar a burrice em geral como um dos males da humanidade.

Voltemos ao início do texto: «Não seria maravilhoso se as pessoas estúpidas soubessem que são estúpidas?» Tenho boas razões para crer que, tal como as pessoas feias sabem bem que são feias, também as pessoas com alguma deficiência cognitiva sabem muito bem que a têm. Tanto a umas como outras, foi-lhes recordada toda a vida a sua «falha», de várias formas, umas mais diretas que outras. E não há nisso nada de maravilhoso – nem para essas pessoas, nem para ninguém…



12/04/24

Frikadeller

 

A ideia de fazer bolas de carne picada é, pelos vistos, tão natural que toda a gente a teve em todo o lado e já há muito tempo (a Wikipédia dá uma boa panorâmica da coisa). No sul da Europa, as almôndegas são feitas num guisado com tomate, mas em muitos outros sítios são fritas ou cozidas num caldo. É claro, variam também a carne usada e os temperos — e o tamanho das bolas. 

Na Escandinávia, as bolas de carne são um prato comum e chamam-se algo como «pãezinhos de carne» em norueguês, sueco e finlandês (kjøttboller, köttbullar e lihapullat, respetivamente), mas frikadeller em dinamarquês. Dizia-me uma amiga brincalhona, já há muitos anos, que uma experiência traumática de todos os homens escandinavos — segundo ela, bem descrita na literatura psicanalítica nórdica — era a passagem das almondegas da mãe às almôndegas da mulher. Bem feito, digo eu, fizessem os homens a comida e nada disso acontecia. Mas a verdade é que, pelo menos no caso das frikadeller (não sei nada das bolas de carne dos outros países escandinavos), há sempre grande uniformidade de sabor e textura, nada que justifique traumas. A não ser que apareça algum português com a mania das inovações… Mas passemos à substância da coisa. Frikadeller clássicas: 

Meio quilo de carne picada (em princípio de vitela e de porco misturadas, também pode levar um bocadinho de toucinho); 1 cebola média; 3 colheres de farinha; 1 ovo; 1,5 dl leite; e sal e pimenta, claro. Mistura-se tudo bem misturado, deixa-se descansar pelo menos uma horinha no frio, molda-se a carne em bolinhas e frita-se em muita manteiga. 

Frikadeller com salada de batata. Foto de cyclonebill, daqui. Licença Creative Commons. 
Eu muitas vezes acrescento uma cenourinha picadinha muito fina e uso flocos de aveia em vez de farinha. Também já usei salsa. Vão experimentando, a ver o que acham que fica bem. Atenção: não se pode (!!!) misturar tudo na máquina. Quer dizer, dá para picar e misturar na máquina os outros ingredientes além da carne e misturá-los depois com a carne à mão, mas meter a carne no processador, não. Ou então, só uma pequena parte da carne, vá. E cuidado, frikadeller é um prato muito guloso, uma pessoa vai comendo, comendo, sem dar por isso, e nunca mais para. 

Agora, da mesma forma que há bolas de carne em todo o lado, também há pastéis de peixe em muitos lados. As frikadeller de peixe (fiskefrikadeller) são o correspondente dinamarquês dos pastéis de bacalhau. Mais uma vez, uma receita clássica, que se pode adaptar ao gosto de cada um: 

Para 800 de bacalhau fresco (ou outro peixe qualquer, mas aqui costuma usar-se bacalhau fresco), uma cebola, duas claras de ovo, três colheres de fécula de batata e três colheres de farinha, e 1 dl de leite, além de sal e pimenta. Com o peixe é que sim, pode triturar-se tudo junto no processador, até obter uma pasta homogénea, que se frita em lume brando. Se não vos sair bem à primeira, ajustem as quantidades à segunda, sim? 




06/04/24

Do trema, do seu desaparecimento e da falta que às vezes faz

 

Se o desaparecimento de letras não pronunciadas foi, na última reforma ortográfica, um passo em frente no sentido de levar mais longe a lógica fonológica que subjaz à reforma republicana, já o desaparecimento do trema foi um passo atrás. 

É claro, em ortografia faz-se muitas vezes compromissos entre a lógica e a simplicidade. A não marcação do acento tónico na escrita do inglês ou do italiano são exemplos disso – por um lado, reduz-se o número de sinais e de regras a aprender; por outro, deixa de se assinalar todo um aspeto importante da língua. Não tenho dúvidas de que o que preside à eliminação do trema na grafia do português (do Brasil apenas, porque em Portugal não se usava) é essa vontade de simplificação. Para ser coerente com o espírito fonológico da ortografia portuguesa, porém, devia ter-se feito ao contrário: devia o uso do trema ter-se alargado à ortografia do português fora da América. Há outros casos, mas, por exemplo, a distinção entre as sequências /kwe/, /kwi/ e /ke/, /ki/ ou /gwe/, /gwi/ e /ge/, /gi/ em, por exemplo, cinquenta e apoquenta, tranquilo e quilo, desague e afague, preguiça e linguiça, é efetivamente fonológica e seria, por isso, mais lógico grafar cinqüenta, tranqüilo, desagüe e lingüiça. (Há outras soluções possíveis, mas seriam tão mal recebidas que é melhor nem pensar nelas…).

Em Portugal, o trema foi suprimido no Acordo Ortográfico de 1945. É claro, a supressão do trema foi na altura criticada — como é sempre criticada qualquer alteração na ortografia —, mas, neste caso, com razão, na minha perspetiva. 

O dramaturgo, poeta e escritor João Silva Tavares publicou a propósito, no Diário de Lisboa, este divertido poema que encontrei no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (mantenho a grafia original). Silva Tavares estranhava a supressão do trema em muitas palavras, mas não em saudade. Não conheço a história da palavra ao pormenor, e não sei se a forma sem ditongo foi muito difundida em alguma época ou lugar, mas, na Lisboa de 1945, devia já ser, como agora, forma muito rara. Embora os dicionários registem as duas pronúncias, a maioria dos falantes do português não pronuncia sa-u-da-de, mas sim sau-da-de — em todas as variantes da língua. 

«SIC TRANSIT GLORIA MUNDI»


Não há que ver—tudo morre. 
Chegada a hora suprema,
nada, nada nos socorre...

Desta vez, morreu o «trema»!


Morreu, não:—foi condenado

pela nossa Academia,

no acordo há tempos firmado

referente á Ortografia.


O «trema», tal corno é

do conhecimento geral,

quando se põe sobre o «u»,

torna expressiva a vogal.


Acento que muita gente

se esquecia de empregar,

consiste, graficamente,

em dois pontinhos a par.


Eu, por mim, digo em verdade:

—nas outras palavras, não,

mas na palavra «Saüdade»,

produzia-me impressão.


Por quê, saudade com «trema»?

Não lhes parece arriscado

complicarmos um problema

que é já de si, complicado?


Fora os «pontos» escusados,

por inuteis, por hostis!

Bem basta sermos forçados

a pôr os «pontos nos i i».


Louvemos, pois, o sistema

do acordo, já concluído,

pois dando sumiço ao «trema»

acabou com o «u» tremido!


Depois disto já firmado,

um amigo intrometido

e filólogo afamado,

declarou-me, compungido,

que não se diz «u» tremido

mas «u» tremado.


Que novidade!... Mau grado

o seu famoso bestunto,

o «sábio» não percebeu

que se eu escrevesse «u» tremado,

o «tremado» neste assunto

não era o «u»:—era eu!


Alexandre O’Neil dizia do trema em «Divertimento com sinais ortográficos» (de Abandono vigiado, 1960)

¨

Frequento palavras estrangeiras


Já vivi em saudade,

mas expulsaram-me

(p'ra sempre?...)

da língua portuguesa.





31/03/24

Criminosos, cães e dilemas morais

 

Num artigo de 2 de fevereiro do blogue 2 Dedos de Conversa, Helena Araújo propõe o seguinte dilema: «Se uma casa estivesse a arder, e lá dentro estivesse um cão e o Hitler, e você só pudesse salvar um deles, qual deles salvava?» A sua própria resposta (que, diz ela, lhe veio «rápida e segura») é que o Hitler era muito pesado.

O Tintim, esse, não hesitou e salvou mesmo o Hitler de morrer afogado. Bom, como o Milou tinha desaparecido, não se lhe pôs o problema da escolha entre Hitler e um cão.

Esta imagem é d'O caso Girassol (1956) e, claro, não é Hitler que Tintim salva – mas parece,
o que faz com que esta imagem circule na Internet com intenções humorísticas.

Isto fez-me pensar em John Suart Mill — mais concretamente, numa nota de rodapé de Utilitarianism. Escreve J. S. Mill a certo passo [traduzo eu do original]:

Cabe à ética dizer-nos quais são os nossos deveres, ou por que teste podemos conhecê-los; mas nenhum sistema de ética exige que o único motivo de tudo o que fazemos seja um sentimento de dever; pelo contrário, noventa e nove por cento de todas as nossas ações são realizadas por outros motivos, e está muito bem que o sejam, se a regra do dever não as condenar. É ainda mais injusto para com o utilitarismo que este equívoco específico se torne motivo de objeção, na medida em que os moralistas utilitaristas foram mais longe que quase todos os outros ao afirmar que o motivo nada tem a ver com a moralidade da ação, embora muito com o valor de quem age. Quem salva um semelhante de morrer afogado faz o que é moralmente correto, quer o seu motivo seja o dever ou a esperança de ser pago pelo trabalho a que deu; e quem trai o amigo que nele confia é culpado de crime, mesmo que o seu objetivo seja servir outro amigo com quem tem maiores obrigações.

A passagem não tem relação nenhuma com o dilema moral atrás apresentado, nem com o quadradinho de Hergé com que aqui brinco. Mas J. S. Mill faz uma interessante nota de rodapé a esta passagem do seu texto, em que responde a uma objeção à ideia acima apresentada:

Um oponente, cuja honestidade intelectual e moral reconheço com prazer (o Rev. J. Llewellyn Davis), objetou a esta passagem, dizendo: «É claro que o há de certo ou errado em salvar um homem de morrer afogado depende muito do motivo com que se o faz. Suponhamos que um tirano, quando um inimigo seu se lança ao mar para lhe escapar, o salva de morrer afogado apenas para poder infligir-lhe torturas mais requintadas — seria sensato descrever esse salvamento como “uma ação moralmente correta”? (…)»

Eu digo que uma pessoa que salve outra de morrer afogado para depois a torturar até à morte não difere apenas no motivo de outra pessoa que faz a mesma coisa por dever ou benevolência; é o próprio ato que é diferente. O salvamento do homem é, no caso em apreço, apenas o início necessário de um ato muito mais atroz do que seria deixá-lo afogar-se. Se o Sr. Davis tivesse dito: «O que há de certo ou errado em salvar um homem de morrer afogado depende muito — não do motivo, mas sim — da intenção», nenhum utilitarista discordaria dele. (…) A moralidade da ação depende inteiramente da intenção — isto é, do que quem age quer fazer. Mas o motivo, isto é, o sentimento que o leva a querer realizá-la, quando não faz diferença no ato, também não altera de modo nenhum a sua moralidade (…).

Não me adianto na discussão da relevância do motivo de uma ação para a moralidade da mesma e da distinção milliana entre motivo e intenção. Proponho antes modificar um pouco a reflexão proposta por Llewellyn Davis: imaginemos que, em vez de um tirano que salva um oponente de morrer afogado para depois lhe infligir horríveis torturas, se trata antes do adversário de um tirano que o salva para ele poder ser julgado e condenado pelos crimes que cometeu. Como avaliar agora o salvamento?

Quando publicou o dilema e a sua resposta no Facebook, a Helena teve, é claro, muitos comentários. Algumas das pessoas que comentaram o post da Helena defenderam o princípio ético fundamental de que, quando se trata de escolher quem deve viver e quem deve morrer, mesmo o pior humano tem prioridade em relação a um animal não humano — a estranha solidariedade da espécie, como dizia já não me lembro quem. Mas não é essa a única razão possível para decidir salvar Hitler: pode-se salvá-lo «para o entregar directamente num tribunal», como a Helena sugeria numa resposta a um comentário à sua publicação.

Se é moralmente mais correto ficar a olhar para a morte por afogamento dos hitleres deste mundo ou ir buscá-los à água para responderem em tribunal pelos seus crimes, eis uma boa discussão moral — tanto numa perspetiva deontológica (há um princípio ético universal de base que o justifique?) como numa perspetiva utilitária (condená-lo tem consequências mais positivas para a maior parte das pessoas que deixá-lo morrer?). Que opinais?

26/03/24

De bons e maus fígados — em iscas ou em pâté ou até por cozinhar

 

Lembro-me de alguém me contar — já não me lembro é quem foi… — que a sua mãe, quando estava grávida, tinha desejos de fígado cru — o que, segundo essa pessoa, nem devia espantar ninguém, porque o fígado era dos alimentos mais saudáveis que se podia comer. Mas cru? Porque não?

Ficou-me sempre na memória o louvor de um repasto de fígado cru de antílope que Rider Haggard faz em As Minas de Salomão, pela voz de Allan Quatermain, narrador e protagonista desse matricial romance de aventuras (deixo aqui a tradução de Eça de Queirós, com grafia original[1], para dar ainda mais exotismo a tão exótica passagem):

Andada uma milha, que nos levou muito tempo, chegámos emfim á extremidade do planalto do monte sobre o qual assentava o «bico do peito». E foi uma grande emoção. Por baixo de nós, adiante de nós, estava (devia estar) emfim essa região mysteriosa para além das serras, que nós vinhamos demandando:—mas toda ella se occultava sob um denso nevoeiro. Alli ficámos pois repousando, esperando. Pouco a pouco, as camadas mais altas da nevoa foram-se desfazendo. Avistámos então um pendor da serra, muito dôce e todo coberto de neve. Depois outras camadas de nevoeiro mais abaixo clarearam; e appareceu aos nossos olhos famintos uma campina de herva verde, um regato correndo através, e á beira d’agua, deitados ou pastando, uns dez ou doze animaes que nos pareceram antilopes.

A nossa alegria foi como a d’uma resurreição. Caça! Alli estava caça para comer, e deliciosa! Era a salvação, era a vida! A difficuldade era caçar—essa caça!... Lembro-me que no nosso immenso alvoroço tivemos uma rapida e atarantada discussão, em voz baixa e tremula—se deviamos aproximar-nos da caça ou fazer fogo d’alli, se deviamos usar as carabinas Winchester ou a «Express»! Indecisão terrivel—porque de acertar ou falhar dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentassemos atravessar o pendor de neve, podiamos espantar o rebanho. E a carabina «Express», apesar d’um alcance inferior, era preferivel—porque as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum dos antilopes.

Emfim fizemos fogo, todos a um tempo, com um estampido que rolou tremendamente nas quebradas dos montes. O fumo clareou. E eis que, alegria sem par! —vemos um dos animaes por terra esperneando furiosamente. Berrámos de puro gozo. Estavamos salvos! Salvos! De fome já não morriamos! Corremos aos trambulhões pela neve abaixo—e em poucos momentos tinhamos nas mãos os figados e o coração do animal, quentes e fumegando!

Mas surgia uma difficuldade. Sem lenha, sem lume, como assar a caça?

— Gente faminta não tem exigencias! Gritou excitadamente o capitão John. A ella, e crúa!

Não restava outra solução—e não nos pareceu repugnante. Arrefecemos as visceras na neve, lavámol-as na agua corrente—e devorámol-as com voracidade! Parece horrivel—mas confesso que aquella carne crúa me soube divinamente! D’ahi a um quarto de hora, que mudança! Voltára-nos a vida, o vigor! O pulso batia outra vez, forte e regular. Eu por mim sentia positivamente o sangue degelar-se, correr-me dentro das veias!

Ao que parece, o consumo de fígado cru tornou-se uma moda nos últimos tempos, devido, sobretudo, à promoção que dele fazem alguns influencers, mas, se é verdade que o fígado é um alimento rico em vitaminas e minerais que não se encontram frequentemente em muitas dietas, também é verdade que o seu consumo regular pode resultar em perigos para a saúde — e não só os que advêm do consumo de qualquer carne crua (ver o que explica sobre o tema uma dietista [em inglês]). Em geral, os médicos aconselham moderação no consumo de fígado.

Fígado à berlinense. Wikimedia Commons, daqui.
Na Dinamarca, come-se muita pasta de fígado, como aliás nos outros países do norte da Europa. A pasta de fígado foi introduzida na Dinamarca em meados do séc. XIX, inicialmente como manjar de luxo, a que só as famílias muito ricas tinham acesso. No início do século XX, porém, com o aumento da produção de suínos para exportação de bacon, o preço do fígado desceu muito e a pasta de fígado tornou-se mais acessível e foi passando cada vez mais a fazer parte dos lanches dos operários dinamarqueses, até acabar por se tornar no produto de grande consumo que atualmente é, um dos condutos mais usados nas sandes abertas de pão de centeio que praticamente todos os dinamarqueses almoçam. Mas é praticamente só em pasta que se come o fígado na Dinamarca. Ainda se encontra às vezes fígado e coração nos supermercados, mas é comida que só algumas pessoas mais velhas comem muito de vez em quando: as novas gerações nunca provaram vísceras, nem querem provar.

Tenho, aliás, a ideia — perfeitamente incomprovada, note-se — que, à medida que uma sociedade vai enriquecendo, as gorduras e as vísceras dos animais vão progressivamente sendo substituídas por carne limpa. Talvez seja só uma impressão minha, mas não me parece que seja só aqui na Dinamarca que as gerações mais jovens que a minha deixaram de comer vísceras e toucinhos. Creio que se passa o mesmo em todos os países mais ricos. Os pratos tradicionais com vísceras, que existem em todo o lado, comem-se cada vez menos. Em Portugal, quem — e onde — come hoje coiratos, rins e fressura? Quem é que come iscas hoje em dia, mesmo em Lisboa, onde podem ser consideradas um dos poucos pratos típicos da cidade?

E eis-nos chegados às iscas lisboetas, que foram a motivação primeira deste texto, antes de ele, por sua própria vontade, se ter alargado, e muito, a outros fígados. E a ideia de explorar o tema das iscas veio- me de um fado: o «Fado das Iscas», que conheço desde miúdo e que me veio no outro dia à memória:

No tempo das patuscadas

Das guitarras e touradas

Das hortas, do carrascão

Eram as iscas o prato

De mais consumo e barato

Na vida dum cidadão


E ninguém se envergonhava

Toda a gente que passava

Entrava nessas vielas

Sentia-se a gente bem

Sendo simples, um vintém

Trinta réis se eram com elas


Se ao longe vinha um parceiro

E o cheirinho lhes sentia

Até mesmo apetecia

Comê-las só p'lo cheiro

E a sua fama foi tal;

O povo então era vê-lo:


Travessa do Cotovelo

E Rua do Arsenal

Hoje tudo isso mudou

A taberninha acabou

Desapareceram os becos

Os cocheiros são choferes

Vigaristas suteneres

E os casqueiros papo-secos


Se os meninos odaliscas

Comessem um prato d'iscas

Daquelas bem temperadas

Morriam de indigestão

Não bebendo um garrafão

D'água das Pedras Salgadas

É claro, não sabia a letra toda de cor. Ao procurá-la na internet, descobri, num blogue indispensável a quem se interesse pelo fado clássico, que este «Fado das Iscas» tem letra de José de Oliveira Cosme e música de Jaime Mendes e foi criação de Álvaro Pereira na revista Coração Português em 1928. Aqui fica uma gravação de Álvaro Pereira de 1962.

Ao pesquisar este fado, encontrei no mesmo blogue outro fado com o mesmo tema — e o mesmo título. Trata-se de um fado de Lourenço Rodrigues e Raúl Ferrão, cantado por Hermínia Silva, que o estreou na revista Iscas com Elas, precisamente, em 1938 (aqui, numa gravação de 1957).

Noutros tempos da ramboia

Metia sempre tipoia

Os tascos tinham beleza

Davam gosto as berzundelas

Com conserva à portuguesa

E as belas iscas com elas


As iscas sabiam bem

Sem elas era um vintém

Quando metia batatas

Trinta reis era um pratinho;

E um tipo nessas frescatas

Enchia sempre o papinho


Belas iscas do Alfaia

E da Rua da Atalaia

Era um petisco burguês

Tinha um sabor sem igual

Comido no Alvarez

Da Rua do Arsenal


Uma isquinha a preceito

Chega a fazer bem ao peito

Aquele cheirinho a isca

Até regala os mortais

A gente quando a petisca

Ai, no fim chora por mais

Como veem, este fado faz também referência à Rua do Arsenal, referindo até o nome de um restaurante — ou do seu proprietário: o Alvarez. Mas, segundo este fado, as iscas não se comiam só no Cais do Sodré — também no Bairro Alto, na Rua da Atalaia — e na Travessa da Queimada, se o Alfaia daquela altura era o mesmo que há hoje. A informação sobre o preço das iscas coincide, no fado da Hermínia, com a do fado de Álvaro Pereira: um vintém só as iscas, 30 réis com batatas. Pelos vistos, os preços mantiveram-se estáveis nos dez anos que separam os dois fados.

Ouvi falar várias vezes de restaurantes de iscas do Bairro Alto, e, por curiosidade, resolvi investigar se era verdade o que me tinham contado: que os pratos estava pregados às mesas e os talheres também presos com correntes; e que o empregado vinha com um balde de água e um pano para os lavar e depois com uma panela de iscas para o encher para o cliente seguinte — uma história que me sempre me pareceu algo fantasiosa.

Descobri então na Internet um texto imprescindível para todos os iscófilos: As Iscas com Elas ou Iscas à Portuguesa, Património, Gastronomia e Turismo em Lisboa, de Pedro Manuel Pereira da Silva, uma tese de mestrado em Antropologia do Turismo e Património. E esta tese, inclui, entre muitas outras informações interessantes, um texto do jornalista e dramaturgo Eduardo Fernandes (1870-1949), que assinava Esculápio. Chama-se o texto «Petisquinhos de Lisboa» e é de 1941.

Começarei pelas iscas, as saborosas iscas com elas e semelas. Semelas porque, em certas tascas, o letreiro que as anunciava juntava as palavras sem e elas numa só. Custavam um vintém sem elas, e trinta réis com elas, ou seja com batatas cozidas e cortadas às rodas, que lhes davam um sabor particular (…) O galego que confeccionava o fígado (…) de que se faziam as iscas, armado de uma faca enorme e espalmada como as que os judeus empregam para imolar as reses no matadouro, sabia cortá-lo em folhas de uma espessura transparente, com grande perícia e habilidade, espalmando a mão esquerda sobre o fígado sanguinolento e abrindo-o finamente com o facalhão. As iscas transitavam deste para um alguidarão onde tinham previamente feito o escabeche, ou salmoura de vinagre, raspas de baço, alho, louro, sal e pimenta e outros ingredientes e temperos, ficando ali a aboborar largo tempo, tapado o alguidar com uma tampa de madeira e movido o seu conteúdo, de quando em quando, com um enorme e comprido garfo de ferro, que servia para arremessar depois as iscas à frigideira sobre a banha de porco que fervia. A banha, tinha-a o galego perto, em grandes boiões de barro, de onde a extraía com uma monstruosa colher de pau, às vezes até só com os dedos, e a frigideira só lá de tempos a tempos se lavava, acumulando os resíduos das iscas de muitos meses, que vinham a dar o seu particular às iscas que começavam a ferver e eram, depois passadas no riquíssimo e apetitoso molho, estiradas com o citado garfo no pratinho, depois de reduzidas na frigideira, com o mesmo garfo, a exíguas dimensões. As batatas estavam cortadas à parte, no tacho onde haviam sido cozidas, e eram espalhadas à mão sobre o pratinho.

- Mais uma com elas! Bai um de conserva! - Gritava o criado, no meio dos fregueses, em mangas de camisa, grandes sapatorros, sem gravata e com um barretinho de cores enfiado no alto da cabeça.

- Bai! Bai! - Respondia o cozinheiro retirando as iscas do alguidar para as levar à frigideira (…).

Ninguém as comia em família com mais gosto, e só os galegos lhes davam aquele precioso tique saboroso que apenas tinha como rival o cheiro particular do petisco, o qual atulhava as ventas do freguês e o atraía ao antro, lá de longe, visto que as vizinhanças da tasca se impregnavam do mágico odor a que ninguém resistia. A casa das iscas era manhosa e acanhada, com os seus bancos corridos e mesas de madeira, às vezes sem toalha, e os garfos pendiam, em algumas delas, de correntes que os ligavam às mesas, não fossem os fregueses safar-se com eles após o repasto.

Parece então que os pratos pregados à mesa lavados in loco surgem do exagero próprio dos mitos, mas os talheres presos com correntes são históricos. Pedro Manuel Pereira da Silva dá também informação mais detalhada sobre a localização dessas casas das iscas:

Na esmagadora maioria dos casos, as ditas Casas das Iscas estavam dispersas por toda a cidade (...). Algumas destas casas tornaram-se muito afamadas, como é o caso do Marreco das Iscas ao Salitre, junto ao Teatro Variedades, a Magina, às Portas de Santo Antão, ou a da Travessa do Cotovelo na esquina com a Rua do Arsenal, onde as Iscas (também designadas em calão de pelintras como «bifes de cabeça chata» ou «bifes sombrios») eram comidas de pé ao balcão e sem garfo, à maneira do moderno prego ou bifana, ou a da Travessa de S. Domingos e da Travessa da Queimada no Bairro Alto e eram geridas por trabalhadores da Galiza. Os galegos, com seu ar rústico, o seu estilo despachado e a sua pronúncia carregada, eram conhecidos por serem de entre as comunidades da capital aquela que se dedicava aos trabalhos mais pesados como moços de fretes, aguadeiros ou proprietários e empregados das denominadas Casas das Iscas. De acordo com o jornal Diário de Lisboa de 22 de Abril de 1944, a última Casa das Iscas a funcionar em Lisboa, na Travessa da Água em Flor nº 165, no Bairro Alto, fechou as portas em 1943, tendo o edifício sido posteriormente demolido.

Fiquei também a saber, à leitura do texto de Pedro Manuel Pereira da Silva, que as iscas vieram substituir a anterior chanfana, que não era o que hoje se conhece com esse nome na Beira, mas antes fressura preparada sensivelmente como as iscas vieram depois a ser preparadas e que era, no séc. XVIII, um prato muito consumido em Lisboa. Eis como Nicolau Tolentino descreve essa chanfana[2]:

«Perguntando o Príncipe do Brasil D. José — Que cousa era chanfana?»


Comprada em asqueroso matadoiro

Sanguinosa forçura, quente, e inteira,

E cortada por gorda taverneira,

Cujo cachaço adorna um cordão d'oiro;


Cabeças de alho com vinagre e loiro,

E alguns carvões, que saltam da fogueira,

Fervendo tudo em vasta frigideira,

C'os indigestos figados de touro;


Suavissimo cheiro, o qual augura

Grato manjar, mas que por causa justa

Dá um sabor, que nem o dêmo o atura;


Isto é chanfana, e sei quanto ella custa;

Deu-me o berço, dar-me-hia a sepultura,

A não valer-me a vossa mão augusta.

Mas deixemos esse sarapatel e voltemos aos fígados. A minha experiência é que não há maneira de tirar ao fígado o sabor a fígado, a não ser misturando-o com tanto toucinho ou carne de porco e outros ingredientes que o fígado se torne minoritário, como nos pâtés e terrinas. E mesmo assim… Cá em casa, ninguém, tirando eu, gosta de fígado; e têm sido bastante vãos os meus esforços de lhe disfarçar o sabor do fígado com caris e molhos... Pessoalmente, se o fígado é bom, nem é preparado à portuguesa que mais gosto dele: prefiro-o cortado em fatias de uns dois centímetros de largura, só temperadas com sal e pimenta e salteadas em manteiga — tendo o cuidado de deixar a carne rosada no meio! — e salpicadas no fim com alho picado muito fininho (espremido no espremedor de alho) e umas gotas de vinho da Madeira só um meio minutinho antes de as tirar do lume.

E sobre fígado, por agora é tudo.

________________

[1] De facto, é uma tradução tão livre que talvez seja melhor chamar-lhe reescrita. Não sofre, pelo menos, de um mal comum das traduções, o excesso de «apego» ao original — e nem de deselegância. Um exemplo, só para verem onde quero chegar:

Here again was a question. The Winchester repeaters—of which we had two, Umbopa carrying poor Ventvögel’s as well as his own—were sighted up to a thousand yards, whereas the expresses were only sighted to three hundred and fifty, beyond which distance shooting with them was more or less guess-work. On the other hand, if they did hit, the express bullets, being “expanding,” were much more likely to bring the game down. It was a knotty point, but I made up my mind that we must risk it and use the expresses.

Lembro-me que no nosso immenso alvoroço tivemos uma rapida e atarantada discussão, em voz baixa e tremula—se deviamos aproximar-nos da caça ou fazer fogo d’alli, se deviamos usar as carabinas Winchester ou a «Express»! Indecisão terrivel—porque de acertar ou falhar dependiam as nossas vidas. Fui eu por fim que me decidi. Se tentassemos atravessar o pendor de neve, podiamos espantar o rebanho. E a carabina «Express», apesar d’um alcance inferior, era preferivel—porque as balas explosivas mais facilmente apanhariam algum dos antilopes.

[2] Podem ler aqui outras descrições dessa mesma chanfana por Bocage e outros poetas da época.


22/03/24

Canções que referem outras canções #6; “634-5789 (Soulsville, U.S.A.)” e “Beechwood 4-5789”

 

Em 1966, Wilson Picket lançou “634-5789 (Soulsville, U.S.A.)”, de Eddie Floyd e Steve Cropper. Mais tarde, tanto Eddie Floyd (em 1967) como Steve Cropper (em 1982) gravaram também as suas próprias versões; e Steve Cropper toca guitarra em todas elas, claro está.

Agora, este número de telefone (ou quase – sem os dois primeiros algarismos, pronto...) tinha já sido utilizado no título e na letra de outra canção de soul telefónica, se se pode dizer assim: o tema "Beechwood 4-5789", de Marvin Gaye, Mickey Stevenson e George Gordy, que as Marvelettes tinham gravado em 1962.
Rotarydial
Na canção das Marvelettes, usa-se ainda o antigo sistema de «telephone exchange names», em que as duas primeiras letras de Beechwood fazem parte do número. Como se pode ver no disco aqui ao lado, BE correspondem a 23, pelo haveria que discar 234–5789. No início dos anos 60, as letras iniciais dos números de telefone foram substituídas pelos números correspondentes e o 63 da canção de Picket corresponde a ME, Memphis, onde se situavam a sede e os estúdios da editora discográfica Stax, para a qual gravaram todos os artistas mais famosos da chamada Southern Soul, numa área por isso mesmo conhecida como Soulsville.

If you need a little lovin'

Call on me...(alright)

If you want a little huggin'

Call on me baby...(mmhmm)

Oh I'll be right here at home.

All you gotta do is pick up the telephone and dial now

6-3-4-5-7-8-9 (that's my number!)

6-3-4-5-7-8-9

And if you need a little huggin'

Call on me...(that's all you gotta do now)

And if you want some kissin'

Call on me baby...(all right!)

No more lonely nights, when you'll be alone.

All you gotta do is pick up your telephone and dial now...


A canção das Marvelettes não é muito diferente no conteúdo: basicamente, dizem ambas «telefona-me quando quiseres, estou ao teu inteiro dispor». No entanto, se na canção de Picket nada esclarece que o apelo se dirige a uma pessoa específica (pode pensar-se nela até como uma oferta pública de serviços… românticos), já na canção das Marvelettes há referência a uma pessoa concreta que se conheceu (ou viu apenas) num baile e que fora demasiado tímido para tomar a iniciativa de se dirigir à protagonista da canção.

You can have this dance with me

You can hold my hand and

Whisper in my ear sweet words that I love to hear

Oh, baby

Don't be shy (don't be shy)

Just take your time (just take your time)

I'd like to get to know you (like to get to know you) I'd like to make you mine (like to make you mine)

I've been waiting, standing here so patiently

For you to come over and have this dance with me

And my number is Beechwood 4-5789

You can call me up and have a date any old time



21/03/24

Preparos e funerais

 

«Na nossa profissão», disse-me uma vez uma enfermeira, quando comecei a trabalhar no setor da saúde, «aprende-se a encarar a morte como uma coisa natural, que é uma coisa que a maior parte das pessoas não faz, não consegue fazer. Mas corremos também o risco de nos tornar cínicos, de deixar de dar à morte a importância que tem, de chegar a galhofar com ela; e não se deve… Não se deve.»

Tentemos ter sempre presente: a morte é o acontecimento mais importante da vida de uma pessoa. 

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Tanatopraxia é uma palavra demasiado pomposa, que tenho dificuldade em relacionar com o trabalho simples que eu conheço: talvez pôr uma fralda, talvez retirar uma algália, lavar o corpo, talvez barbear, pentear, vestir o corpo, talvez calçá-lo. Em dinamarquês, diz-se «gøre i stand» e nunca aprendi como se diz em português normal — ou em português de enfermagem — porque esse trabalho nunca fez parte da minha vida em Portugal. «Gøre i stand» traduz-se, em quase todos os contextos, por «arranjar» ou «preparar». É só isso. 

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Tem-se pena das pessoas que padecem e mais ainda se se lhes acompanha de perto o sofrimento; e deixa-se de ter pena delas quando o termina o penar. Ouvi uma colega dizer de uma recém-falecida: «Estava mais bonita. Nunca lhe tido conhecido aquela expressão de sossego.» 

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Mikhail Aleksandrovich Vrubel: Tamara no caixão, 1891 (excerto)
Já quis, mas já não quero, decidir o que quero que façam de mim quando eu morrer. Nunca pensei em escolher a roupa com que quero vestido o meu corpo, como há quem faça («calça, culote, paletó e almofadinha», pede a famosa canção de João de Aquino e Paulo César Pinheiro, e vesti uma vez um defunto de traje de gala, com casaca de abas de grilo…); mas pensei às vezes em escolher algum texto ou uma canção para o meu funeral; ou deixar insólitas indicações para a ocorrência, como Mário de Sá-Carneiro, que queria que lhe pusessem o caixão sobre um burro ajaezado à andaluza... 

Ora!... O funeral é uma das cerimónias importantes da nossa vida, é certo, mas é uma cerimónia em que, infelizmente?, já não vamos a tempo de participar. Que escolha quem fica como o quer.


22/02/24

Mangas e tangas: mais uma conversa sobre a origem de termos de calão

 

Mangas…

No português que eu falo (no meu dialeto e no meu socioleto, se assim o preferirem), mangas, nome masculino de dois números, significa «malandro», «atrevido», «pinta(s)», «moinante». É natural que, a partir deste significado inicial, tenha evoluído para significar apenas «indivíduo, fulano, sujeito», sem mais, como o propõe o dicionário Porto Editora em linha. É pena que falte à entrada o outro significado que eu referi; e surpreende-me que se considere a palavra de dois géneros, a não ser que seja coisa recente: nunca na minha vida ouvi nada como «A Fernanda é uma ganda mangas!» ou «A Paula? Ui, essa mangas…». Mas é louvável que a entrada mangas exista, já que os outros dicionários a que tenho acesso simplesmente não registam o termo. 

O Porto Editora propõe como etimologia a palavra portuguesa manga, simplesmente, acrescentada de um S. Não é que seja etimologia mal pensada, já que o aparente plural de nomes é construção prolífica, no registo a que mangas pertence, para designar pessoas específicas ou tipos de pessoas. E as partes do vestuário ou do corpo são, precisamente. material comum para essas construções. Além do sinistro ditador que todos conhecem como «o Botas», muitos de vocês deverão ter topado, ao longo da vida, com alcunhas como «o Pantufas» ou «o Calcinhas», ou «o Vidrinhos», (para alguém que usasse óculos), «o Mãozinhas», «o Pezinhos», «o Orelhas» ou «o Monas» (se se achasse que sobressaíam na pessoa algumas partes do corpo) ou «o Barbas», «o Bigodes» ou «o Patilhas» (para referir quem não rapasse o pelo em toda a face ou parte dela). Quanto a nomes genéricos, diz-se, por exemplo, «um conas» ou «um coninhas» de alguém com pouco expediente — atado, como também se diz —, que facilmente se deixe embaraçar, enganar ou amedrontar, ou «um tretas» de alguém que cultive a mentira ou o exagero. Talvez uma alcunha «o Mangas», devida a qualquer particularidade do vestuário de um determinado moinante, tenha tido tanta fortuna que, de designar um indivíduo, tenha passado a designar o seu tipo. 

Mas há outra hipótese etimológica que me parece possível, e talvez até mais lógica, embora não me atreva a dá-la como quase certa — que é o mais que se pode fazer quando se fala destas coisas —, por falta de informação sobre as datas de primeiras atestações de mangas com este significado em português e por desconhecer por que vias possa ter chegado a Portugal o termo que proponho: o grego μάγκας, pronunciado [máŋgas].

A definição de um dicionário grego coincide em grande parte com a definição que eu gostaria de ver nos dicionário portugueses. (Notem que a palavra mangas, na definição que se segue, é a palavra mangas em grego, não em português. A tradução é do senhor Google, eu apenas a tentei tornar mais elegante.) 

Mangas: pessoa do povo caracterizada por excesso de autoconfiança ou arrogância, e com uma aparência ou um comportamento (vestuário, movimentos, vocabulário, tom de voz, etc.) diferente do habitual: Stavrakas, o tipo que representa o malandro nas histórias de Karagiozis [teatro de sombras], é um mangas e um vadio. || (por extensão) tipo de homem comum que se porta como um rapazola e se arma em forte: Aqueles estão armados em mangas e viajam sem cinto de segurança.[1] 

Mas o mais interessante é que, na origem, mangas é um tipo histórico específico, o tal que Stavrakas representa no teatro de sombras. E é essa designação dos membros de um grupo social de finais do séc. XIX e inícios do séc. XX que está na origem das aceções posteriores; e é essa aceção primeira que eu penso que pode ter chegado a Portugal no princípio do século XX, como chegou a outros países. Os mangas estão intimamente ligados à cultura do rebético, a canção urbana grega surgida na segunda metade do século XIX e eram facilmente reconhecíveis pela sua indumentária: chapéu de feltro, casaco vestido só numa manga, longa faixa à cintura, calça riscada e sapato de bico[2]. Se aceitarmos que o rebético está para Atenas ou Salónica como o fado para Lisboa, o tango para Buenos Aires, ou a valse musette para Paris, então o mangas é o faia, o tanguero e o marlou.

No fundo, o que eu proponho é que se tenha passado com o grego mangas o mesmo que, por exemplo, se passou na mesma altura com o francês apache, que, começando por designar um grupo social específico da ralé parisiense, ganhou depois um sentido genérico e extravasou do francês para outras línguas, entre as quais o português (conheci o termo pela minha avó, nascida em 1919, e há até uma valsa portuguesa de 1915 com esse nome [3]). Como já disse, não sei como é que a designação pode ter chegado a Portugal (através de marinheiros?), mas parece-me certo que a fama dos mangas não se ficou pela Grécia.

Deixo-vos, para terminar as páginas sobre mangas na Wikipédia em inglês e em espanhol e um bonito rebético sobre os mangas de Votanikós, um bairro de Atenas.

Ζαχαριασ Κασιματησ: Ο Μαγκασ του Βοτανικου, 1934, (Zaharias Kasimatis, “Mangas de Votanikós”)


… e tangas

O dicionário Porto Editora em linha regista a expressão «coloquial» dar tanga a (alguém) com o significado de «divertir-se à custa de (alguém)» e o verbo «popular» tanguear com o significado de «troçar de (alguém) com aparente seriedade; dar tanga a». É uma definição que não me satisfaz, porque a tanga (de conversa) não existe só na expressão dar tanga, mas é antes um nome relativamente livre que se pode usar em frases como «Ele está na tanga, não vás nisso.», «Ena, aquele gajo é só tangas», «Grande tanga que ela te pregou!», etc. E, em vez de «troça», significa também (ou sobretudo) «patranha, ardil, intrujice» ou «conversa de chacha». Tanguear é «enganar, aldrabar, baratinar» — dar tanga, sim, senhor, mas com este significado. Já o dicionário da Academia de Ciência de Lisboa acrescenta este significado de «mentira» na expressão dar uma tanga, mas, como o Porto Editora, não tem para esta tanga uma entrada separada, nem lhe encontra uma etimologia diferente da palavra que eu creio apenas convergente e que refere uma diminuta peça de roupa[4].

Melhor está o Priberam, que separa a tanga-mentira da tanga-calção e a define como termo «informal» que significa «história fictícia e enganosa (ex.: isso é tudo uma grande tanga). = aldrabice, mentira, peta, treta.» Tenho muitas dúvidas, porém, que se deva juntar, como o Priberam o faz, esta tanga com a tanga que refere uma «moeda asiática de pequeno valor, usada na antiga Índia Portuguesa» e que vem de uma língua indiana (o sânscrito tangka, segundo o Priberam e o Porto Editora, ou o concani tang, segundo o dicionário da Academia de Ciências de Lisboa). 

Parece-me muito difícil explicar como se passa da peça de vestuário a mentira (mas percebe-se bem estar/ficar/deixar alguém de tanga no sentido de «miserável, sem vintém»). Já a deriva semântica da moeda para a converseta parece fazer mais sentido (dar tanga como «dar algo [conversa, neste caso] sem valor»), mas há pelo menos uma coisa fundamental que fica por explicar com esta etimologia: a coincidência com o calão de Buenos Aires, o lunfardo. Acho provável (mais uma vez, sem ter certeza nenhuma) que esta tanga tenha uma origem diferente da tanga-peça de vestuário e da tanga-moeda indiana. Como já aqui referi uma vez, «o calão português partilha com o calão espanhol vários termos, nomeadamente os oriundos do caló (que dá a palavra calão, aliás) e tem também vários termos em comum com o lunfardo rioplatense». Não encontro referência a tanga no sentido de «mentira» nem de «troça» no dicionário da Real Academia Espanhola, mas encontro-a em dicionários online de lunfardo, entre os quais o do site Todo Tango. Eis as várias aceções de tanga em lunfardo (escuso-me aqui de traduzir):

Tanga (lunf.) Arreglo de un asunto; artilugio para obtener ventajas; componenda; negociado; estratagema // empleado de parque de diversiones que simula ser público y participa de los juegos acertando, para animar a otros a también hacerlo// (pop.) bíkini muy reducida en la pieza inferior// (delinc.) ayudante de un estafador o de un ladrón carterista// estafa, fraude; ventaja que se obtiene mediante ardid o engaño. ir de tanga (delinc.) Acompañar a un punguista en el momento que comete sustraccíones.  

Como se vê, a definição de tanga coincide com a que proponho em português e acrescenta-lhe ainda outros significados que tanto podem derivar da aceção de «engano, ardil» como, pelo contrário, estar na sua origem: os de «falso membro do público dos parques de diversões» e de «ajudante de vigarista ou carteirista». 

Agora, tendo em conta a maior riqueza semântica de tanga no calão de Buenos Aires que no calão português[5], não será de supor que o termo é originário do lunfardo e que está antes diretamente relacionado com tango, que é, na origem, música dos bairros populares, e com os tangueros, que são — ou foram — a malevaje (malandragem) de Buenos Aires? Não é por acaso que lunfardo, o nome do calão local, significa «ladrão». Note-se que, em português, tanguista tanto significa «mentiroso» como «bailarino de tango» e tanguear tanto quer dizer «dançar o tango» como «endrominar».

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Notas

[1] O dicionário grego acrescenta uma segunda aceção, que corresponde ao português barra, e que mangas não tem em português: «uma pessoa experiente com competências reconhecidas e aplaudidas»: Ele é mangas no seu trabalho.

[2] É importante referir aqui um outro grupo de rufias gregos, os koutsavakia (singular koutsavaki). Embora muitas vezes se apresente mangas como sinónimo de koutsavaki, há quem distinga os dois grupos e afirme que, com rigor, a descrição da estranha indumentária da malandragem urbana acima descrita é dos koutsavakia, que são imediatamente anteriores aos mangas e estão na sua origem. Ver por exemplo este artigo, ilustrado com «talvez a única foto de um autêntico koutsavaki [em 1880]» (em grego, terão de usar um tradutor automático)  ou este (em inglês). A verdade é que, nas fotos de ambientes de rebético dos anos 1930, os mangas parecem antes… faias!

[3] Esta valsa foi suficientemente conhecida para ter sido regravada e reeditada nos anos 70 ou 80, num disco da série Melodias de Sempre, pelo qual a conheci. Não deixa de ser curioso que a pessoa que carregou a música para o YouTube confunda os apaches, rufiões da época, com os índios apaches (embora o nome da tribo esteja, ao que parece, na origem do nome do gangue). Obviamente, o termo depressa foi esquecido em português.

[4] Curiosamente, os dicionários não se entendem sobre a origem da tanga-vestuário: o Porto Editora, o dicionário da Academia de Ciências de Lisboa, o Priberam, o Michaelis e o Aulete (ou seja, os dicionários portugueses) dão como étimo o quimbundo (n)ganga, «pano», mas outros dicionários propõem antes o tupi tanga, «tanga» — é o caso do Dicionário da Real Academia Espanhola e do alemão Duden.

[5] Alguns acusar-me-ão de estar a aplicar às línguas um princípio da genética evolutiva, segundo o qual a diversidade genética é maior na zona de origem de uma espécie, mas juro que não era essa a minha ideia. Se bem que, agora que falam nisso, não deixa de ser uma ideia a explorar… (Mais uma tanga, dizem vocês e provavelmente com toda a razão…)

[Ambas as imagens da Wikipedia, autores desconhecidos e domínio público.]






09/02/24

Phrasal verbs, uma coisa inglesa (?)

 

[Este texto não faz sentido para quem não tenha conhecimentos mínimos de inglês, posto que é, precisamente, sobre algum vocabulário dessa língua. Ponho, no entanto, os significados em português das várias expressões e frases, para o caso de o leitor não as conhecer todas.]

Dizia-me há pouco tempo um amigo que uma das coisas que achava mais difíceis em inglês — e que acreditava ser uma das riquezas da língua — eram os chamados phrasal verbs, as combinações de verbos com preposições ou advérbios cujo significado não se pode deduzir do significado dos elementos que as compõem, como put out («apagar», «incomodar», «disponibilizar», «editar», «emitir», «produzir» e mais), put up with («suportar», «aguentar», «aturar») ou put off («adiar», «desencorajar», «desagradar» e mais) — que não se podem deduzir do significado de put, que basicamente significa «pôr». Mas serão os phrasal verbs algo assim tão especial e algo tão idiossincraticamente inglês?  

Quero notar, antes de mais, que phrasal verbs é uma designação muito típica da tradição de ensino de inglês como língua segunda e não tanto da literatura científica, embora haja trabalhos de linguística que abordem o conceito. O dicionário Cambridge define phrasal verb como «um sintagma composto por um verbo com uma preposição ou advérbio ou ambos, cujo significado é diferente do significado das partes separadamente» e dá como exemplos pay for[1] («pagar (por)»), work out («calcular», «resolver», «elaborar», «esgotar», «fazer exercício» e mais) e make up («inventar», «formar», «constituir», «maquilhar», «recuperar», «fazer as pazes» e mais). 

Na secção de gramática que se segue à definição, no entanto, o Cambridge desdiz-se e explica mais em pormenor que (como na sua própria definição acima) a designação se usa muitas vezes para três tipos diferentes de «verbos polilexicais», mas que, com rigor, apenas devia referir um desses tipos, os verbos polilexicais compostos de um verbo principal e uma partícula adverbial, as mais comuns das quais são around, away, down, in, off, on, out, over, round e up[2]. Os verbos preposicionais que selecionam obrigatoriamente uma preposição que os ligue a um objeto não seriam, pois, phrasal verbs em sentido estrito[3]. Exemplos destes «falsos» phrasal verbs são (verbos a itálico e negrito; preposições a itálico e negrito e sublinhadas; e objetos só em itálico) break into (a house), «assaltar (uma casa)»; cope with (a difficult situation), «enfrentar/lidar com (uma situação difícil)»; deal with (a problem), «lidar com (um problema)»; depend on, «depender de», do without, «passar sem», look after (a child), «tomar conta de (uma criança»); look at, «olhar para», look for, «procurar»; look forward to, «ansiar por, aguardar com expetativa», etc. Nestes casos, a preposição vem forçosamente antes do objeto e nunca depois. Tem de se dizer 

Could you look after my bag while I go and buy the tickets? («Pode tomar-me conta da mala enquanto eu vou ali comprar os bilhetes?»)

e nunca

*Could you look my bag after …,

ao passo que os «verdadeiros» phrasal verbs podem ter ou não um objeto e a partícula não verbal do verbo polilexical pode vir antes ou depois do objeto[3]. Eis alguns exemplos, também do Dicionário Cambridge:

She brought up three kids all alone («Criou três filhos sozinha») 

ou 

I brought my children up to be polite («Ensinei os meus filhos a serem bem-educados»).

Normalmente, quando o objeto é longo, vem depois da partícula não verbal:

Many couples do not want to take on the responsibility of bringing up a large family of three or four children. («Muitos casais não querem assumir a responsabilidade de criar uma grande família de três ou quatro filhos»)

Há outras propostas que, seguindo esta ideia, dão definições mais completas e mais restritas de phrasal verb, algumas delas tão completas e tão restritas que excluem da definição uma grande parte das expressões verbais que costumam figurar nas listas comuns destas expressões[4]. A questão não é, pois, nada simples e não tenho vontade nem competência para a desenvolver aqui. Muitas listas de phrasal verbs que por aí circulam, porém, misturam os legítimos e os bastardos sem grande problema — e aceitemos que está muito bem assim…

Agora, o que me parece interessante nas definições mais rigorosas aqui referidas é que são essencialmente morfossintáticas e não semânticas — exceto a definição inicial de que o significado de um phrasal verb «é diferente do significado das partes separadamente». Esta questão interessa-me e quero analisá-la aqui um pouco mais em pormenor, até porque muitos dos exemplos que o Cambridge dá de phrasal verbs não encaixam bem nesta definição. 

Antes de mais quero constatar que o significado de muitos phrasal verbs em sentido estrito decorre muito diretamente do significado do verbo ou do verbo e da preposição ou advérbio que o constitui — mesmo quando isso não possibilita que se os compreenda sem os ter aprendido antes. Mas mesmo esta compreensão é muitas vezes possível. É certo que give up não decorre do sentido de give nem de up, que make out não decorre de make nem de out, mas come out, em qualquer um dos seus sentidos, decorre dos significados de come e de out. O mesmo em relação a go ahead, go after (something), go against (somebody), por exemplo. Take off, no sentido de «despir» decorre também muito naturalmente dos significados dos dois constituintes da expressão – e até no sentido de «descolar» se pode ver uma relação clara do significado da expressão com o significado dos seus elementos constitutivos. Também é duvidoso que o significado de break down, tanto na aceção de «avariar-se» como na aceção de «decompor(-se)», não se possa deduzir do significado dos seus elementos. Na expressão look forward to, embora não se possa deduzir o seu significado dos constituintes, como a definição acima apresentada prescreve, pode claramente ver-se como o seu significado se forma a partir dos seus constituintes. E há muitos mais exemplos. 

A questão é também, obviamente, definir o significado de maneira suficientemente abstrata. Os phrasal verbs nasceram muito provavelmente de um significado inicial abstrato dos elementos que os compõem. Isto, aplica-se, aliás, a todos os sentidos «desviantes» de qualquer verbo: uma definição de comer como «ingerir alimentos sólidos» não explica os muitos usos da palavra, mas uma definição mais abstrata como «ser recipiente de» já pode explicar alguns deles. Se se usar antes uma ideia ainda mais abstrata de incorporação, que implique a posse daquilo de que se é recipiente, mais significados podem ainda ser explicados. Mas isto também não é questão que queira tratar de passagem aqui no meio de um texto sobre phrasal verbs… Voltemos a estes.

Muitas vezes, as partículas não verbais dos phrasal verbs parecem funcionar como marcadores de aspeto e modo de processo: não é o significado que muda, é a «temporalidade» (em sentido lato) que se altera[5]. Alguns deles, sobretudo muitos com up, marcam uma conclusão da ação (perfetividade) e outros, com on, marcam a sua continuação (imperfetividade). Poder-se-ia até argumentar que, em certas situações, certas posposições/advérbios parecem funcionar antes como partícula aspetuais/temporais independentes, livres de se aplicar a certos verbos: como se diz go on ou move on, «continuar, prosseguir»,  também se pode construir livremente jam on, «continuar a improvisar [música]» ou dream on, «continuar a sonhar» e muito mais seguindo este modelo.  Também a partícula around pode ser uma marca iterativa que parece ser independente, usando-se para significar que a ação se repete muitas vezes, normalmente com muitas pessoas, como em call around, «telefonar a um grupo de amigos, clientes, etc., (conforme a situação)», ou sleep around, «ir para a cama com muita gente». É certo que estas palavras não se podem usar livremente com todos os verbos e haveria que definir com rigor quando podem ser usadas desta forma, mas isso é trabalho para especialistas da língua inglesa — uma coisa que eu não sou. 

Até agora, falei só do inglês. Mas é importante notar que, com algumas diferenças estruturais e sem um nome específico, existem também phrasal verbs nas outras línguas germânicas. O dinamarquês, que é a única destas línguas que conheço bem, tem muitos, provavelmente mais que o inglês. Não me vou aqui, porém, adiantar na comparação dos phrasal verbs do inglês com os do dinamarquês ou de outras línguas germânicas que a grande maioria dos leitores do blogue não conhece, por interessante que essa comparação possa ser. Mas podemos assentar nisto: por muito que normalmente só se fale de phrasal verbs quando se fala do inglês, eles estão longe de existir só nesta língua.

Nas línguas latinas, tudo é um bocado diferente. As preposições colaram-se aos verbos ainda em latim e nem nos damos conta de que apreender (e aprender), compreender, depreender e empreender[6] são, originalmente, um mesmo verbo com várias preposições, como admitir, cometer, demitirpermitir, ou consistir, desistir, existir, insistir ou persistir — e dezenas de outros casos. Note-se que o mesmo processo de formação existe nas línguas germânicas, em que a preposição se colou ao verbo que a segue. Nalguns casos, como no inglês outbargain («ficar a ganhar numa negociação ou num contrato») parecerá óbvio aos falantes da língua que se trata de bargain («negociar») antecedido de out, mas ninguém pensa em understand («compreender») como o verbo stand (preposicionado — até porque stand under tem outro significado («erguer-se, estar situado debaixo de»)  — e, evidentemente, estes verbos não são considerados phrasal verbs[7]

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«Comer fora»
James Tissot: La multiplication des pains («A multiplicação dos pães»), 1886-1896. Brooklyn Museum, daqui.
Há, porém, casos de verbos nas línguas latinas que parecem ter as mesmas características que alguns dos ditos phrasal verbs ingleses, na sua definição mais alargada e essencialmente semântica: verbo + partícula => significado não inferível dos dois elementos. Alguns têm até uma construção exatamente igual. Eat out, «comer fora», por exemplo, é igual em inglês, português, castelhano e italiano[8] e count on (something or someone), «contar com (alguma coisa ou alguém)», tem exatamente a mesma forma em francês, compter sur (quelque chose ou quelqu'un), e italiano, contare su (qualcosa ou qualcuno), e formas muito semelhantes em português e castelhano. É claro, pode considerar-se exagerado incluir verbos como eat out nas listas dos phrasal verbs, por muito que ele lá se encontre. A definição de phrasal verb é, como se viu, algo vaga, mas trata-se aqui de mais um exemplo de um verbo com um advérbio cujo sentido decorre bastante diretamente do sentido individual dos elementos que o compõem. É certo que eat out não se refere normalmente a jantar no quintal ou na rua (embora em certas situações até possa referir isso, situações em que, presumo, os dois elementos não são já considerados um phrasal verb…), mas é de comer fora do espaço definido como seu ou como habitual. Se considerarmos eat out um phrasal verb, então comer fora também o é. 

Mas há outros casos mais curiosos, a que parece poder aplicar-se uma definição mais restrita de phrasal verb — desde que não se a limite à presença de um advérbio: estar para («ter vontade de», passar por («ser tomado por»), levar com («ser atingido por; ser alvo/vítima de; ter de aturar, aguentar»), olhar por («vigiar, tomar conta de») ou sair a («herdar características dos progenitores»), para dar alguns exemplos óbvios, mas há mais.   Vejamos o caso de dar, que é, creio, o mais prolífico em português. Assim, (ir/vir) dar a é «conduzir a», dar com é «encontrar, descobrir», dar em é «tornar-se» (restrito a predicações de caráter negativo), dar para pode significar «servir para», «ser suficiente para» ou «ser possível», dar + dativo + com pode significar muitas coisas desde «bater» (deu-lhe com um pau) a «ingerir» (dei-lhe com uma bela feijoada), dar + dativo + para indica o surgimento de uma vontade, estado de espírito ou hábito e dar por significa «notar, aperceber-se de» ou «considerar». 

Mas, mesmo que nos atenhamos à definição restrita de phrasal verb com uma partícula adverbial, ainda somos capazes de encontrar casos em português, além do já referido comer fora: por exemplo (mas há mais), deitar/mandar abaixo, «derrubar» ou «dizer mal de»; ir atrás de, «acreditar em alguém; obedecer a alguém», andar atrás de, «tentar seduzir»; ficar atrás de, «ser de qualidade inferior»; andar em cima de, «vigiar de perto» ou «perseguir, controlar insistente e abusivamente», estar/ficar por dentro, «ficar a saber/saber de algo»; ir dentro, «ser preso», botar/deitar/mandar fora, «desfazer-se de», ir/chegar longe, «ter sucesso»; e ir-se abaixo, «perder forças, físicas ou psíquicas», «deixar de trabalhar (um motor)».

Conclusões? Não há. Isto era mais a gente a conversar como quem conversa à mesa do café, sem preocupações de chegar a algo de muito definitivo… A não ser que os tais phrasal verbs ingleses não parecem ser, afinal, nada de tão idiossincrático como os querem, às vezes, fazer parecer…

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Eis um link para uma lista abrangente de phrasal verbs, uma das muitas que se encontram na Internet.: 

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[1] Se vos parece estranho que pay for seja exemplo de phrasal verb, agradar-vos-á saber que pay for não faz parte da lista de phrasal verbs da entrada pay do dicionário Cambridge. Note-se que a minha intenção não é de modo algum apontar as incoerências deste dicionário, que escolhi ao acaso, mas antes apontar as naturais incoerências de um conceito vago como phrasal verb

[2] A categoria advérbio é difícil de definir. De facto, não conheço nenhuma definição abrangente, a não ser talvez «palavra invariável que não introduza um sintagma» e, mesmo essa, é pouco clara. Alguns dos advérbios que formam phrasal verbs têm as mesma forma que preposições: around, away, down, in, off, on, out, over, round e up (embora a designação de down, off e up como preposições seja muito discutível). 

Outra questão é como definir verbos polilexicais. Se se considerar polilexical um verbo quando seleciona como complemento um sintagma preposicional, o mundo está cheio de verbos polilexicais… Por exemplo: olhar, ao contrário de ver, seleciona sempre um complemento introduzido por uma preposição — embora às vezes ele não seja expresso. Há alguma diferença fundamental das sequências look after a bag e look at a bag, por exemplo, relativamente às sequências correspondentes em português, olhar por uma mala e olhar para uma mala? Devem considerar-se look at/olhar para e look after/olhar por verbos polilexicais? 

[3] Quando o objeto é pronominalizado, porém, vem sempre depois do verbo e antes da preposição/advérbio.

I’ve made some copies. Would you like me to hand them out? («Tirei cópias. Quer que as distribua?»)

e não 

*Would you like me to hand out them?

[4] Numa tese de mestrado de 2004, em que analisa os phrasal verbs em inglês, dinamarquês e alemão, Elisabeth Ingeborg Kaalund lista «as características definidoras de um phrasal verb que se aplicam aos três idiomas», que incluem, entre outras, a possibilidade de nominalização, de passivização e de mobilidade da partícula adverbial, podendo esta ser colocada à direita do verbo (uma questão também referida, como indiquei, na definição mais estrita do dicionário Cambridge). É uma definição de muito maior rigor e que reduz muito o número de phrasal verbs. Redu-lo tanto que, segundo esta definição, algumas combinações normalmente consideradas phrasal verbs não o seriam de facto. 

Vejamos a questão da nominalização. Se analisarmos alguns exemplos de phrasal verbs referidos neste texto, é certo que de bring up se pode fazer upbringing e de put out se pode fazer output apenas num dos muitos sentidos da expressão, tal como make-up só se refere a maquilhagem e nunca a invenção. De make up não se faz *upmaking, nem de take on se faz *ontaking (embora existam intake e outtake). 

Além disso, a possibilidade de passivização não parece ser um bom teste do facto de o phrasal verb ter as mesmas propriedades que um verbo simples, pelo menos em inglês: há verbos, como look after, que embora não sendo, como vimos, «verdadeiros» phrasal verbs, admitem passivização (frase daqui): 

There are a number of reasons why a child may be looked after by the local authority. 

A tese de Kaalund pode ser consultada em linha: Kaalund, E. I. (2004). Phrasal Verbs in English: a comparison with German and Danish. [Candidatus, Copenhagen Business School].   

[5] Uma vez, li num fórum da internet um comentário de alguém que considerava que os chamados prefixos aspetuais das línguas eslavas eram como alguns phrasal verbs. Para explicar de uma forma muito simplificada o que são estes prefixos, dou-vos um exemplo do russo: há dois verbos  читать e прочитать, pronunciados [tchitat] e [pratchitat], para dizer «ler» (muitas vezes, trata-se da mesma forma sem prefixo e com prefixo, como neste exemplo, mas nem sempre), conforme se fale de ocorrência de leitura sem referir o seu completamento («ontem, li/estive a ler depois do jantar») ou completamente de leitura («ontem, li um texto sobre Amelia Earhart»). Ora, de facto, muitas vezes a partícula up do inglês funciona como uma marca de perfectividade, ou seja, completamento: he didn’t eat entende-se como «ele não comeu», ao passo que he didn’t eat up não significa que não tenha comido, mas que não acabou de comer.

[6] Em surpreender, o sur- é o sobre francês, língua de que nos vem a palavra. 

[7] Em dinamarquês, embora um verbo com uma preposição fixa muitas vezes signifique uma coisa completamente diferente do mesmo verbo com uma posposição solta (påtage, «assumir, comprometer-se» vs  tage på, «engordar», ou opstå, «surgir» vs stå op, «levantar-se»), há também muitos verbos que podem ter uma preposição anteposta ao verbo e colada a ele ou a mesma preposição solta depois do verbo sem mudar de significado: underskrive ou skrive under significam ambos «assinar», medtage ou tage med signficam ambos «levar», etc. — podia aqui dar muitos mais exemplos. O único caso de que agora me consigo lembrar nas línguas latinas é o de sobrevoar em português (ou de survoler em francês, igual), que também pode ocorrer como voar sobre

Estamos a sobrevoar Paris 

ou

Estamos a voar sobre Paris

significam a mesma coisa. 

[8] Já em francês não se pode dizer *manger dehors com o mesmo significado.


05/02/24

Canções que referem outras canções #5: “Baykoca Destanı” e “Cirrus Minor”

 

Esta referência de uma canção a outra canção é um bocado diferente das anteriores, porque não é feita em palavras de pessoas, mas sim em canto de pássaro. O tema de um dos álbuns mais famosos do chamado rock anatoliano, 2023, de Barış Manço (1975), remete, a 1'02'', para um tema de tema de Roger Waters, “Cirrus Minor”, do álbum Soundtrack From The Film "More", dos Pink Floyd (1968): são os mesmos passarinhos. Parece que as gravações usadas foram tiradas de um disco de efeitos sonoros.

Tirando os passarinhos, que servem para afirmar a linhagem psicadélica de Manço, as duas canções não têm nada em comum, nem musical nem liricamente. “Cirrus Minor” é claramente uma canção bucólica. Nem o psicadelismo sideral do último terceto lhe consegue arranhar o bucolismo. 

In a churchyard by a river

Lazing in the haze of midday 

Laughing in the grasses and the graze 


Yellow bird you are not long in 

Singing and in flying on 

Laughing and in leaving 


Willow weeping in the water 

Waving to the river daughters 

Swaying in the ripples and the reeds

 

On a trip to Cirrus Minor 

Saw a crater in the sun 

A thousand miles of moonlight later

 

“Baykoca Destanı” é claramente uma canção épica. Aliás, destanı significa «epopeia», precisamente. É “A Saga de Baykoca”, algo assim. É claro, eu não falo turco e os programas de tradução automática veem-se aflitos para traduzir coisas destas. Não se fiem na minha tradução de um excerto da letra, que aparece no fim deste texto. 

Vejo que a canção fala de Bayoca e de Banu Çiçek, talvez princesa, que espera por ele, mas ele não volta. Baykoca poderia ser Bayhoca Bey, sobrinho do fundador do império otomano, Osmã I. Bayoca Bey morreu aos 16 anos na batalha de Hamzabey, a primeira grande batalha otomana, ainda antes da fundação do império. Banu Çiçek poderia ser uma personagem lendária do épico Livro de Dede Korkut. Se assim for, são personagens de mundos diferentes. pelo que não faço ideia de como se juntam — se se juntam — nesta canção. Mas talvez não, talvez seja eu a delirar. O que são, com certeza, é personagens de mundos que desconheço completamente. O que não importa muito ou mesmo nada para desfrutar da canção. 

Pensavas que o rufar dos também era a música de uma boda? 

A bandeira a esvoaçar, pensaste que era a noiva? 

Pensavas que o combate com rifles e canhões era só festa, diversão? (…) 


Navios no Mar Negro. 

A artilharia ribomba nas montanhas, gemem a terra e o céu (…) 


Tanto tempo esperou Banu Çiçek pelo regresso de Baykoca. 

A chuva é um choro fino. 

E cada gota que cai destroça-me o coração.